Capítulo vinte e quatro, sobre o homem que me chamava de anjo

119 21 5
                                    


Ele estava morto.

Eu estava viva.


E eu sabia que esquecê-lo seria inevitável.


Minha memória já começava a falhar, eu já não me lembrava muito bem do lugar parecido com o céu.

Precisava fazer alguma coisa, porque não queria esquecê-lo.

Não podia.


Talvez ele ainda estivesse lá quando alguém resolvesse me levar, e eu precisava me lembrar.


Precisava memorizar para sempre os músculos perfeitos que cobriam seus braços e não tinham sido páreos para o urso.

As covinhas estúpidas que tinham me irritado logo no início e que tinham ficado com ele até o final.

Os olhos azuis, brilhantes e dissimulados, que me encaravam.

A voz grossa que me chamava equivocadamente de anjo, e os lábios carnudos que eu tinha beijado uma única vez.


Os dias passavam e foi ficando pior.

Eu precisava fazer alguma coisa, precisava fazer alguma coisa.


Não queria que ele acabasse como um simples nome em minha cabeça.

Um rótulo.


Não.


E então eu me sentei.

Peguei essa caneta e comecei a rabiscar o que me lembrava, antes que fosse tarde demais.


Mas é claro que seria.

Sempre é tarde demais, e eu vou esquecê-lo.

Mas as palavras, não – e elas são tudo que me restam, embora não consiga colocá-las por completo no papel.


Ou talvez você não esqueça.

Talvez você esteja sentado do meu lado agora no ônibus, na fila do cinema, ou tenha passado por mim na rua.

Talvez esteja lendo meus relatos e achando que fiquei maluca, ou que essa possa ser apenas mais uma historinha para fazer crianças más dormirem e terem pesadelos.


Ou, talvez, apesar de ir contra todas as probabilidades, você acredite em mim no fim das contas.

E eu não ficaria surpresa.


Os humanos têm o péssimo hábito de serem imprevisíveis à vezes.


O homem que me chamava de anjo [FINALIZADA]Onde histórias criam vida. Descubra agora