Decidi voltar à minha cidade de infância. Não é natal porque, na verdade minha mãe viajou ao Rio de Janeiro só para eu nascer. Naquela época, 71 anos atrás, a futura cidade que ali nascia não reunia condições para um parto moderno, contando com cerca de 15.000 habitantes, entre áreas urbana e rural.
Deixei de morar lá, permanentemente, há 61 anos, com dez anos de idade, embora nos dez anos seguintes tenha frequentado a cidade de forma esporádica, em fins de semana ou férias. Depois disso, anos depois, já regressei uma ou duas vezes, mas não com o intuito que me proponho nesse momento. Dessa vez não seria uma visita a velhos amigos de forma corrida, em um fim de semana corrido, mas um roteiro programado no tempo adequado, com período reservado para visitar os locais que me traziam boas lembranças infantis.
Essas lembranças de infância são as melhores que alguém pode ter. Liberdade sem frescura e na ausência da odienta ditadura do politicamente correto. Como no texto de Veríssimo, sou um sobrevivente. Não existia Ipad, nem joguinhos eletrônicos, andávamos de bicicletas sem uso de capacetes. Dividíamos uma garrafa de suco, refrigerante ou até uma cerveja escondida, entre três ou quatro amigos, e ninguém morreu por causa de vermes! Os maiores problemas na escola eram: chegar atrasado, mastigar chicletes na classe ou mandar bilhetinhos falando mal da professora. Correr demais no recreio ou matar aula só pra ficar jogando bola no campinho. Nenhum pai ou mãe iria à escola reclamar ou mesmo tentar punir a professora pelo mau desempenho dos seus filhos. As nossas iniciativas eram "nossas", mas as consequências também!
Nosso bairro era todo formado apenas por casas. Elas eram de propriedade da empresa que praticamente fundara a cidade e não existiam grades, a separação era por cercas vivas de fícus benjamina. Essa foi a primeira mudança que percebi. Estruturas pesadas de aço, ferro ou alumínio, identificando o perigo latente vigiado por câmeras, cercavam as casas, antes tão livres como nós. Hoje, elas já não pertencem mais à empresa, foram vendidas a particulares e muitos de seus novos proprietários sequer têm alguma relação com o empreendimento. São outros tempos. A cidade ganhou vida própria, independente da grande empresa que ainda segue no papel de grande pagadora de impostos do município, mas não é mais dona de tudo e muito menos dos destinos de uma população que já ultrapassa um quarto de milhão de pessoas.
Depois de visitar os locais que logicamente estavam bastante transformados; nossa pracinha de muitos folguedos e correrias, o terreno com um campinho de futebol hoje ocupado por um clube com enorme infraestrutura, os cantinhos das brincadeiras e namoricos, a famosa casa da diretoria, chegou o momento de rever a casa em que vivi com meus pais, até os dez anos.
Cheguei à sua fachada disposto a pagar o mico de pedir para entrar como antigo morador, só para avivar as lembranças. Valia a pena. A mesma fachada, agora munida de vidros fechando as varandas inferior e superior. A mesma entrada lateral de veículos que se distinguia da maioria das outras residências, devido à inclinação do terreno naquela parte alta da rua. Lembro-me que foi um desafio quando estava aprendendo a dirigir, anos mais tarde quando já frequentava a moradia apenas esporadicamente, sair da garagem e descer aquela entrada de marcha à ré. O aspecto geral, no entanto, era de um desleixo consentido.
Percebi logo que os donos deviam estar viajando. Não havia ninguém em casa. A decepção foi grande, mas ao comentar esse infortúnio com amigos que estava revendo naqueles dias, eles me disseram que não seria de todo impossível entrar. Certamente, até de forma menos constrangedora. Sabiam que as chaves da residência, quando das viagens dos moradores, eram mantidas pelo jardineiro, que a utilizava para alimentar os peixes de um aquário durante a ausência da família. Conheciam esse fato, porque ele era o jardineiro comum a muitas casas. Por sorte, o tal jardineiro era o Tobias, filho do jardineiro da nossa época de infância e que se juntava muitas vezes às nossas brincadeiras. Dificilmente o Tobias negaria a permissão para a minha entrada, era o que todos diziam. Eu lembrava-me vagamente do Tobias, mas animado pelo relato dos amigos, fiquei confiante de que conseguiria meu intento.
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Coincidências ou não!
Short StoryMeu avô faleceu em 1959, em uma época em que eu frequentava a casa de minha infância esporadicamente, embora meu quarto fosse mantido sempre arrumado para mim. Quando ele se foi, minha avó veio morar com minha mãe e meu pai trazendo com ela poucas c...