Parte III

34 5 5
                                    


Seus pensamentos não se ocupavam com outra coisa a não ser Clair De Lune. Parecia que haviam se passado anos desde que se conheceram, não apenas um dia. Sentia-se íntimo dela, mesmo tendo trocado não mais que meia dúzia de palavras. Nunca experimentara nada igual. Aquela conexão, o elo avassalador que o ligava àquela garota o corroía, retirando-lhe até a sanidade ‒ motivo que o levara a cometer o crime na noite passada, acreditava. Na hora, imaginou Clair na mão daqueles homens se não tivesse partido minutos antes. Teria sido ela a vítima.

Ele foi consumido pelo tédio, contou as horas para que chegasse a noite, esquecendo-se até de se alimentar. Todos os pensamentos, gestos, olhares vagos eram somente para Clair. Quando dormia, era com ela que sonhava. Chegou a ter pesadelos. Acordou às onze da noite, a tela do relógio digital brilhando no escuro. Tinha consciência de que seria arriscado retornar àquela praça abandonada, mas a vontade de rever a moça gritava mais alto que a razão, mesmo sem ter certeza se a encontraria por lá depois daquele crime. Fez um lanche rápido antes do banho. Quando saiu do sobrado, deixou na lixeira um saco preto com as roupas que usara na noite anterior.

Sileno chegou ao local em que conheceu Clair depois de fazer um percurso diferente. Dessa vez não ousou atravessar o conjunto de casas, a entrada principal para o largo. Deu uma volta no quarteirão e pulou a grade que dava para os fundos de um armazém desocupado. Foi fácil. Logo se embrenhou no mato alto. Estava mais escuro que na noite anterior, pela ausência da Lua. Serpeou pelas árvores tal qual um gato cauteloso. Aguardava qualquer movimentação que não fosse a sua. Felizmente, naquela sombra, não se viam as marcas de horror da ira de Sileno, que acendeu um cigarro e se recostou numa árvore, à espera de Clair.

Ela não apareceu. Como Sileno já imaginara e tolamente não queria admitir. Ela não retornaria ao local onde acontecera um crime bárbaro havia pouco menos de vinte e quatro horas. O rapaz percebeu seu grande erro. Afastara Clair dali. Ela deveria ter escutado sobre os rumores do homicídio. Não seria seguro retornar. Não fazia ideia de quando a veria novamente; de repente, foi tomado pelo desespero. Ele precisava de Clair, nem que fosse só para contemplá-la por um segundo. E ela surgiu como se tivesse escutado seu chamado silencioso. Sileno viu seu rosto luzir alvo sob o luar que se anunciou discreto naquela madrugada. Mantinha-se distante dele, os braços cruzando o próprio corpo como num gesto de proteção.

— Clair...

— Não, não se aproxime — disse ela, fria.

— Não faça isso comigo, Clair — pediu o rapaz, quase uma súplica. — Não me rejeite, por favor.

— O que você fez, Sileno? — Sua voz saiu embargada. Nos olhos, decepção.

Chocado, ele não respondeu. Como ela descobriu?

— O-QUE-VOCÊ-FEZ? — gritou Clair.

— Eu... eu não fiz nada... — Sileno encarou o chão. Não forçaria desculpas.

— MENTIROSO! — Ela escondeu o rosto entre as mãos, chorando. — Eu vi tudo! Eu vi!

— Clair, não... — Sileno fez menção de se aproximar. Queria dizer todas as palavras do mundo, mas naquele momento nada soava útil. Então, na noite anterior, ela não tinha ido embora como ele havia pensando.

— Afaste-se! Afaste-se de mim! Suas mãos estão sujas! — Ela o encarou com ódio.

— ERA EU OU VOCÊ, CLAIR! EU OU VOCÊ! — urrou Sileno, descontrolado. A garota se calou, assustada, os olhos arregalados. Ele percebeu: — Desculpe, Clair, me perdoe... eu não quis...

— Foi esse Sileno que vi na noite passada — disse ela com frieza, limpando o rosto com as mãos.

— Clair, ele iam... eles iam... — Sileno perdeu-se, impotente.

— Eu vi o que você é.

Sua voz não continha repugnância, nem acusação, apenas pena; e isso acertou Sileno em cheio, direto no coração. Ele já sabia, Clair fugiria dele, como acontecera com seu pai, uma aberração.

— Então, chame a polícia ou o órgão que recolhe animais!

— Não... — Clair murmurou, surpresa.

— Se sabe o que eu sou e o que posso fazer, por que voltou aqui? — Havia um misto de raiva e decepção na pergunta.

Ela não respondeu, mas pela primeira vez o encarou com a tez suave que Sileno conhecia. Seus olhos transbordaram plácidos, livres das lágrimas, sorriam tímidos.

— Acho que o amo — confessou, quase num suspiro.

Sileno a pegaria nos braços, sentiria o gosto dos seus lábios até lhe roubar o fôlego, mas deixou-se cair de joelhos ao pés descalços e pequeninos de Clair. As lágrimas dela caíram sobre a pele alva, e ele as secou com beijos. Sileno sentiu esvaziar-se. Teve medo de perder Clair, e esse medo apavorou-o, transbordando pelo cálice frágil do desespero que, de tão cheio, se partiu em milhões de estrelas que agora brilhavam em seus olhos. Afinal, ela o amava. Levantou-se e aparou o pequeno rosto de Clair De Lune entre as mãos. Ela não fugiu. Sileno deixou-se afogar no grande mar cinza que eram seus olhos, dois contornos perfeitos da Lua. Também não a beijou; resistiu, ou melhor, aceitou, mesmo sem aquela força estranha que o controlava imperar entre eles dois.

— Diga de novo — pediu ele, desenhando com os olhos o contorno dos lábios de Clair, sua amada.

— Eu o amo — Seu rosto se ruborizou com delicadeza. E na mesma velocidade com que se livrou das mãos de Sileno, afastou-se.

— E o que a impede de ficar comigo? — perguntou Sileno, com nó na garganta. Sabia a resposta.

— Você... você não é um homem — admitiu, receosa de tê-lo ofendido.

— Tem razão, não sou. — disse simplesmente.

— Você é um fauno ou sátiro? — perguntou com uma curiosidade quase infantil.

Sileno riu com a pergunta. Os mortais nunca haviam deixado os mitos morrerem, por isso, talvez, ainda permaneçam vivos.

— Sou o que você quiser que eu seja — respondeu, imitando o mesmo doce mistério de Clair De Lune.

Ainda o encarando, ela ponderou por uns segundos e disse:

— Quero que seja um homem de verdade. Um homem completo.

A feição de Clair se fez rija e gélida como um mármore. Sileno compreendeu que aquele desejo era sério; não riu. Ela não se subjugaria às suas vontades, como as outras amantes, e ele não insistiria. Não queria Clair De Lune por uma noite; queria-a pela vida inteira, por toda eternidade, mas ela era uma mortal e ele fadado ao infinito. Agora, tendo seu amor correspondido, faria tudo para que fosse concretizado, se tornaria apenas um homem mortal. E dessa vez, foi ele quem partiu primeiro. Clair De Lune ficou para trás, acompanhando-o de longe, até vê-lo sumir entre as sombras.

Acho desnecessária essa frase. Vamos eliminar?

t3)

CLAIR DE LUNEOnde histórias criam vida. Descubra agora