Capítulo Único

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To Germany
(À Alemanha)
Por Charles Hamilton Sorley

You are blind like us. Your hurt no man designed,
(Você é cega como nós. Sua dor não foi projetada por homem algum)
And no man claimed the conquest of your land.
(E nenhum homem alegou a conquista de sua terra)
But gropers both through fields of thought confined
(Mas os dois lados atravessaram campos de pensamento confinado)
We stumble and we do not understand.
(Nós tropeçamos e nós não entendemos)
You only saw your future bigly planned,
(Você só viu seu futuro grandiosamente planejado)
And we, the tapering paths of our own mind,
(E nós, os caminhos afunilados de nossa própria mente)
And in each other's dearest ways we stand,
(E permanecemos nos modos mais queridos uns dos outros)
And hiss and hate. And the blind fight the blind.
(E assobios e ódio. E o cego combate o cego)

When it is peace, then we may view again
(Quando houver paz, poderemos ver novamente)
With new-won eyes each other's truer form
(Com novos olhos a verdadeira forma um do outro)
And wonder. Grown more loving-kind and warm
(E nos admirar. Crescer mais amável e terno)
We'll grasp firm hands and laugh at the old pain,
(Vamos agarrar firmes mãos e rir da velha dor)
When it is peace. But until peace, the storm
(Quando houver paz. Mas até que haja paz, a tempestade)
The darkness and the thunder and the rain.
(A escuridão e os trovões e a chuva)

Sophie adorava aquele poema. Charles Hamilton Sorley era um de seus poetas favoritos. Ele tinha uma daquelas histórias que valia a pena ser contada. Seu pai fora professor universitário e prezava pela educação do filho. O garoto se formou com louvor e, antes de iniciar seus estudos em Oxford, decidiu passar um ano na Alemanha. Estamos falando de 1913.
Sorley estava em solo alemão quando a Primeira Guerra Mundial foi declarada. Recebeu ordens para deixar o país e voltou, impacientemente, para sua terra natal. Alistou-se em 1914 e lutou por sua pátria. Seus esforços lhe renderam o título de capitão de tropas.
Aos vinte anos, em outubro de 1915, Charles toma posição na Batalha de Loos – uma das principais ofensivas britânicas sobre a Frente Ocidental. Um atirador de elite rival acerta uma bala certeira em sua cabeça.
No ano seguinte, trinta e sete poemas seus encontrados completos foram publicados na coleção: "Marlborough and OtherPoems". Apesar de o conjunto de sua obra não poder ser rotulado como anti-guerra, "To Germany" reflete seus sentimentos por um país que o alimenta sendo ao mesmo tempo um inimigo.
Sophie encontrava, naquelas simples palavras, uma motivação humana quase visceral. Interpretava as mesmas como uma recusa a atribuir culpa a um único lado. O campo de batalha era um terreno intermediário entre ambições políticas exageradas e imperialistas. Uma overdose de ganância que os levara à incapacidade de reconhecimento mútuo.
Ela nunca entendera porque os homens guerreavam uns com os outros. Queria pensar que uma pessoa não mataria outra por pura cobiça, mas cá estava a violência diária. Quem dirá em uma guerra?
Seu ímpeto por conhecimento, compreensão, conscientização e sua própria humanidade levaram-na a escolher uma carreira que a maior parte de sua família não aprovava: História. Seus pais achavam um desperdício. Ela via nisso uma necessidade. Queria ensinar, queria aprender. Queria buscar, queria entender.
Seus vinte e seis anos vividos lhe mostraram como teorias poderiam ser deturpadas a ponto de incitar o ódio. Crescera em um país que iniciara duas guerras por se julgar inferiorizado pelo resto do mundo. Entendia que a Alemanha realmente era abandonada pela Europa, mas via nos resultados catastróficos as consequências do ódio. Um homem que decide começar um genocídio para formar uma nação pura não lhe parecia nem um pouco capaz de ser defendido.
Era nisso que a jovem pensava, enquanto uma de suas alunas lia o poema em voz alta e calma para o resto da classe.
Ao ouvir os últimos versos sendo proferidos, Sophie abandonou seus pensamentos e passou a olhar para os rostos absortos de seus alunos. No primeiro dia de cada ano letivo, fazia essa análise.
– Muito bem, pessoal – chamou, assim que a garotinha finalizou a leitura. – Depois dessa pequena introdução à nossa aula, posso me apresentar normalmente. Sou a professora Weissmann, mas vocês podem me chamar de Sophie. Muitos de vocês foram meus alunos no ano passado e já sabem que eu dou aulas de história no colégio. Agora, gostaria que os alunos novos se levantassem e dissessem seus nomes. Pode ser?
Um garoto loiro se levantou prontamente, anunciando que se chamava Evan. Na fileira seguinte, uma menina fez o mesmo. Era Katryn. Depois dela, ninguém se manifestou. A professora correu os olhos pela turma, checando se as apresentações tinham realmente terminado. Não tinham.
Na última carteira da fileira próxima à parede, um garoto de pele morena parecia querer esconder o próprio rosto. Suas mãos estavam apertadas às laterais do corpo e os pés balançavam freneticamente. Era como se estivesse inconscientemente buscando o meio mais rápido de desaparecer dali.
Weissmann caminhou calmamente até ele. Não queria assustá-lo ou sufocá-lo. Abaixou-se, de forma a ficar mais ou menos de sua altura.
– E você, meu querido? Como se chama?
O menino levantou minimamente o olhar, retornando-o ao chão em questão de segundos.
– Eu sei que o primeiro dia de aula pode ser bem assustador. – A paciência de Sophie era como um abraço parental para quem ouvisse suas palavras. – Mas, vamos lá. Pode confiar em mim? Eu sinto que seremos grandes amigos. Posso saber o nome do meu futuro amigo?
– Lukas. – A voz estava baixa. –Lukas Keller.
– É um nome maravilhoso. – A mulher sorria ternamente. – Sabe o que significa?
– Não – respondeu, ainda acanhado.
– Significa iluminado, brilhante, cercado de luz. Você gosta de estrelas, Lukas?
– Gosto.
– É como se você fosse uma delas. Legal, não é mesmo?
O garoto sacudiu a cabeça em afirmação. Ainda estava arredio, mas já mantinha a cabeça erguida. Era um avanço enorme, mesmo que não o parecesse. Os outros alunos não perceberam quando Lukas relaxou. Estavam todos ocupados demais perguntando a Sophie qual o significado do nome deles. Um chegou até mesmo a questionar o porquê de o nome de seu gato não querer dizer gato. O pequeno achou graça.
O sinal bateu, anunciando o fim da aula. Sophie passou em mais quatro salas, sem tirar de sua mente o rosto indefeso de uma criança maravilhosa.
Não pôde evitar. Correu para tentar encontrá-lo na saída. Sentiu uma pontada de decepção ao não vê-lo em meio àquele mar de crianças e adolescentes que se acotovelavam para estar do lado defora do colégio. Passar pelas catracas e portões parecia uma necessidade urgente para eles. Provavelmente estavam preocupados com a possibilidade de perder a série de comédia que passava na hora do almoço. Se bem que as crianças não deveriam ver aquilo.
Sophie esperou alguns minutos para não ser empurrada por algum formando em ascensão. Foi nesse momento de espera que viu as mesmas pernas frenéticas balançando sobre um banco, sem que os pés alcançassem o chão. Sorriu com a cena e sentou-se ao lado dele.
– Por que não foi ainda, Lukas?
– Meu pai não chegou. O chefe novo dele deve estar de plantão. Aí meu pai fica também.
– Puxa! Seu pai é médico? Que legal! - O garoto sorriu, concordando.
– Ele abre as pessoas que sofrem acidentes. Minha avó diz que ele faz uma mágica com a parte de dentro das pessoas e consegue deixar elas bem de novo. É tipo um superpoder especial.
– É mesmo. – Sophie estava encantada com a admiração do garoto pelo pai. – Você se importa se eu ficar aqui até que seu pai super-herói chegue?
– Não, senhorita Weissmann. Mas olha ele ali. – O garoto apontava para um carro que passava pela portaria da escola em velocidade acima da recomendada.
Um homem alto, relativamente forte e de cabelos baixos saiu do automóvel, abrindo os braços e um enorme sorriso.
– Ah, meu garoto! – Os dois se esmagavam mutuamente em um abraço de urso. – Já estava com saudades, acredita? Obrigado por fazer companhia a ele. – Agora, referia-se à professora. – É quase impossível conseguir uma folga naquele hospital.
– Deve ser – Sophie concordou, sorrindo cordialmente. Se havia uma coisa que sua família havia lhe ensinado com perfeição, era a ter educação. Tal virtude ficava clara em sua relação comos alunos e suas respectivas famílias.
– Como foram as aulas, grandão? – Lukas batia na cintura do pai, mas adorava ouvir esse apelido. Sonhava em ficar tão alto quanto o homem que o abraçava. – Gostou da escola nova?
– Eu estava bem assustado no começo –admitiu. – As crianças são muito diferentes, papai. Elas não foram cruéis comigo, mas tive medo que fossem por eu não me parecer em nada com elas.
– Já conversamos sobre isso, Lukas. As pessoas podem ser bem más, mas você é um garoto de ouro. É o menino mais legal que eu conheço.
– A professora Sophie disse que eu sou uma estrela. – O garoto abriu um sorriso largo ao contar aquilo para seu pai. A ideia de ser uma estrela lhe era quase tão encantadora quanto ser um herói de suas dezenas de revistas em quadrinhos. – Ela me ajudou a ficar calmo. E ela ainda dá aulas de história. Não é demais?
Sophie sorria, já sentindo um carinho enorme por aquela criança. Sempre se apegara fácil aos alunos, mas aquele menino era especial. Era mesmo uma estrela brilhante que chegara para iluminar um pouco esse mundo tão cinzento.
– É demais mesmo – o mais velho respondeu, bagunçando os cabelos do pequeno. – Obrigado por isso. É o primeiro mês dele no país e o primeiro dia de aula. A senhora deve imaginar como é difícil nessa idade.
– Tem total razão – Sophie disse, rindo. – Mas, por favor, não me chame de senhora.
O homem levou a mão aos cabelos,também rindo.
– Desculpe-me, força do hábito. Como devo chamá-la, então?
– Apenas Sophie. Não sou grande fã de pronomes de tratamento.
– Nem eu. – Ergueu a mão em um cumprimento. – Thomas.
– Prazer em conhecê-lo. Tem um filho incrível, Thomas.
– O prazer é meu. Ele é mesmo, não é?– Os Keller se encararam, deixando transparecer o enorme orgulho que tinham um do outro. Eram a dupla dinâmica e inseparável. Como Batman e Robin, mas ainda melhores. Pelo menos, era isso que Lukas dizia.
– É, sim. Preciso ir. Vou deixá-los a sós. – Sophie colocou as mãos nos bolsos da calça, prestes a se virar em retirada. – Até mais, Lukas.
O garoto se soltou das mãos do pai e veio correndo em direção à professora. Parou em sua frente, como se precisasse de coragem para o próximo passo. Parecia ponderar se aquilo seria ou não certo.
A mulher se abaixou em sua frente, olhando-o no fundo dos olhos. Dava a permissão para ele agir. Imediatamente, ele abriu os magros e quentes braços e os passou pelas costas da moça. Ela retribuiu, abraçando o menino.
– Obrigado – ele disse e saiu correndo em direção ao pai.
– Eu que agradeço, Lukas – respondeu, mas o garoto já estava longe demais para poder ouvi-la.


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