Na época da escola era muito importante estar em um grupo. Assim era possível tirar "brincadeiras" pesadas com as meninas e amedrontar os moleques das séries inferiores. Não havia internet naquele tempo, só em banco e era raro ter um amigo de verdade, sobravam colegas para as brincadeiras de rua, para pregar peça nos outros e até para contar histórias de assombração.
Anos depois, ainda conservo algumas antigas amizades na página de um site de relacionamentos que pouco uso, muitas dessas pessoas talvez nem falariam comigo na rua, mas é importante estar lá e conservar essas amizades, pode ser que um dia a gente se reúna...
Viro a noite em frente ao computador depois de levar trabalho para casa, o que é comum. Durmo sob o teclado e quando me espanto já é de manhã, o sol já aparece. O dia parece estranho...
No total, a minha página no Face (outro site de relacionamentos badalado do momento) tem 347 "amigos", 80% dos quais nunca tive contato no mundo real e nem vi pessoalmente, a maioria são amigos do amigo de um colega distante. Às vezes adiciono as garotas que conheço ou que saio eventualmente, assim não preciso necessariamente ligar no outro dia e não esqueço os nomes delas. Basta adicionar ou add. Todos esses amigos parecem ser legais, cheio de qualidades, sempre bem vestidos, nos melhores lugares, com as melhores fotos, lendo os melhores livros e comentando os filmes como críticos de cinema. Não é raro postar frases de escritores famosos, muitas apócrifas, as da Clarice Lispector são as que circulam mais. De longe todos são agradáveis e pouco ameaçadores.
Chego no trabalho e a internet está fora do ar. Passo a tarde toda sem internet, o que é pior que ficar sem água para tomar banho ou sem comida na geladeira. Esse é o ônus do mundo digital, inventam coisas que você conseguia viver antes e não consegue viver depois... exemplos: celular, mp3, internet móvel.
Recebo a ligação desesperada da minha irmã.
– Marcos, não sei o que aconteceu, mas tem um monte de gente ligando e te procurando...tenho uns vinte recados anotados. Tu ficas distribuindo o número residencial por aí é?
Estranho. Quase nunca dou o telefone residencial! Será que atropelei alguém e não percebi ou deixei de pagar alguém ou deve ser esse pessoal do telemarketing querendo vender. Hoje nem é meu aniversário para tanta gente me ligar.
2° dia. 9h36 da manhã.
Acordo tarde. Ligo o celular e levo um susto: 77 ligações perdidas, a primeira 7h15 e a última 9h34. Quem podem ser essas pessoas me ligando desde cedo. Desconheço todos os números. Pelo menos três não são do país. Tudo isso é muito estranho....não esperava ligações de ninguém, muito menos nessa quantidade abusiva.
Entro na web e percebo que a página do Face está fora do ar. Procuro a causa nos fóruns da web e descubro que a página está fora do ar desde ontem a tarde. Parece ter sido um ataque hacker pesado. Afetou meio bilhão de usuários.
Sigo em frente. Chego um pouco tarde na agência. Todo me olham com ar de preocupação. Ocupo minha mesa, checo meu e-mail e levo outro espanto: 347 mensagens não lidas! A primeira vez que tantas mensagens ficam sem leitura, geralmente isso acontece quando viajo para lugares sem conexão, como o interior, mas nunca nessa quantidade. Abro alguns e leio mensagens com as palavras "amigo", "saudades", "quanto tempo"...parecem que todos me conhecem e desejam interagir comigo, mas não vejo motivo para tanta gente desconhecida me procurar...nem sou famoso ou algo do tipo.
Já voltando para casa, o trânsito caótico do Entroncamento me consome. Consigo pegar uma transversal com trânsito livre e quase bato um ciclista...foi por pouco. Sigo tranquilo ouvindo música...quando percebo que alguns carros parecem me seguir.
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Amigos.com
Short StoryPublicado originalmente na coletânea Prêmio Proex de Literatura, realizado pela Universidade Federal do Pará (Brasil).