Pinceladas do Passado

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  Pego minha taça e aprecio o odor do vinho.

  Impregna em minha mente num piscar de olhos e quando me dou conta estou sentindo a última gota da terceira garrafa em meus lábios.

  A partir disso sinto ela se aproximar. Fecho meus olhos e solto a garrafa que cai junto às outras duas que estavam perto da lareira.

—Ah! Ellen... – sussurro. A escuridão em meus olhos faz minha mente delirar. Tentar imaginá-la não era difícil, mas pintá-la era algo praticamente impossível.

  Imagino-a com seu formoso corpo. Suas coxas e seios volumosos faziam com que todos os homens se apaixonassem e todas as mulheres a invejassem. Sua pele era absurdamente branca, assim como os flocos de neve. Seus cabelos longos eram tão avermelhados e raros que poderia dizer que pagariam milhões ao um único cacho. E aqueles olhos... AH! Aqueles olhos... Tão azuis e claros que nem os mais belos lagos cristalinos poderiam se comparar com tamanha beleza.

  Vejo-a perfeitamente em minha mente agora.

  Pego o pincel ao meu lado esquerdo e volto abrir meus olhos. Minha tela está implorando pelas tintas, então, delicadamente coloco meu pincel sobre a cor avermelhada e passo no imenso branco.

 Começo minha criação.

  Enquanto desenho as esbeltas curvas de minha esposa, ouço um pequeno e profundo som melancólico vindo em meus ouvidos.

 Sorrio.

  O piano estava sendo tocado por Ellen.

—Cante para mim querida - eu peço.

  Segundos depois escuto a voz mais suave e indescritível que alguém poderia ouvir. Olho rapidamente para a janela, a noite nunca fora tão bela.

  Continuo a pintá-la formosamente, enquanto aprecio a musicalidade no ar. Estava na hora de desenhar a roupa e relembro que ela usara um vestido para se apresentar no Grande Teatro. Um vestido vermelho brilhante de cauda longa, que possuía apenas uma única alça. Lembro-me dele perfeitamente, Ellen nunca havia ficado tão linda quanto aquele dia.

  O som do piano fica cada vez mais alto, assim como a voz dela.

  Desenho o final da cauda e tento imaginar um fundo para aquela pintura, junto com as lembranças do vestido agora também vinha o local do Grande Teatro.

  O lugar era nada mais do que perfeito, com enormes lustres em seu teto, várias e várias cadeiras da mais fina luxúria. As paredes possuíam desenhos que foram detalhadamente feitos pelos melhores pintores da época. O palco obviamente, era imenso, e mostrava todo esplendor que lugar algum poderia transmitir. Ellen se apresentara aquela noite.

  Termino de desenhar o último detalhe da cortina avermelhada do palco, mas percebo que havia um tom meio amarelado nela. Tento corrigir o meu possível erro de ter trocado as tintas e coloco o vermelho novamente, mas quanto mais eu passo mais a cor amarelada surge. Aos poucos, percebo que a cortina que tinha feito ficava cada vez mais amarelada e alaranjada, um tanto parecido com a cor que se faz o fogo.

  Meus olhos imediatamente se arregalam e relembro do incêndio que acontecera no Grande Teatro.

  As cortinas tinham sido consumidas pelo fogo e as centenas de pessoas que ali estavam corriam desesperadas para as saídas. A fumaça negra transbordava pelo imenso lugar, deixando tudo cada vez mais escuro e atordoante. Lembro-me também de correr para perto do palco, apesar de já estar consumido completamente pelas chamas.

  Ouço gritos por todos os lugares, a fumaça se alastra e meus pulmões não aguentam e a tosse fica mais forte a ponto de me ajoelhar. Olho para frente com a visão embaçada e antes de desmaiar, vejo-a caída, sendo consumida pelas chamas.

  Pobre Ellen... Permaneceu viva depois do acidente, mas suas queimaduras eram tão graves que transformaram totalmente o seu rosto.

  Três meses depois ela estava com tanta vergonha de si que se trancou em nosso quarto. Eu tentava animá-la, dizendo que para mim ela ainda continuava a criatura mais linda que eu já vira, mas isso não bastava, não para Ellen.

  Um ano se passou e em uma noite, estava eu com minha amante num motel, quando de repente, tive uma impressão ruim subir em minhas veias. Volto para minha mansão e subo as escadas, quando chego ao meu quarto vejo Ellen caída sobre o piano, olho para a onde estavam suas delicadas mãos e noto o sangue saindo de seus pulsos e indo para as teclas esbranquiçadas. Ela havia se matado.

  Depois daquela noite, eu bebo constantemente.

  Olho para a tela em minha frente, havia conseguido pintar o impossível: minha bela Ellen estava perfeita.

  Me levanto e pego uma outra garrafa de vinho que estava sobre a mesa. Faço o mesmo gesto como da primeira garrafa e dou um gole. Aprecio o vinho assim como escuto a música.

  Arregalo os olhos.

  Solto a garrafa a fazendo quebrar contra o chão.

  O piano estava sendo tocado e a voz que cantava ainda soava em meus ouvidos.

  Ando apreensivo até o meu quadro e quando o olho novamente a pintura estava mudada.

  Era meu próprio retrato. Meus cabelos curtos castanhos e meus olhos esverdeados, minha pele rosada estava intacta, mas o que me perturbava era o desenho de uma mão queimada em volta do meu pescoço.

  O piano cessa, mas a voz ainda permanece, e sinto se aproximar cada vez mais.

  Segundos depois sinto meu pescoço sendo tocado por uma mão de modo suave. Fecho meus olhos e sinto os lábios dela tocarem meu pescoço. Quando abro novamente, olho para o quadro e vejo Ellen queimada ao meu lado.

  Meu coração acelera e vejo meu próprio rosto derretendo.

—Você também é perfeito querido...

EllenOnde histórias criam vida. Descubra agora