Sileno sabia o que precisava fazer para atender àquele desejo que também era seu. Se Clair tivesse pedido que se transformasse em pedra, ele o faria. Faria qualquer coisa que significasse ter Clair para sempre. Naquela noite não voltou para o seu quarto escondido no antigo sobrado. Talvez nem retornasse se o plano que tinha em mente desse certo.
Fazia pouco mais de dois mil anos que Sileno não visitava o lado adormecido de sua mente. Durante todo esse tempo tinha se deixado esquecer, ou pelo menos tentado. Entretanto, ainda tinha consciência de quem era, da onde vinha, e para lá ele tinha de voltar. Foi fácil. Abriu a gaveta de lembranças milenares e num piscar de olhos estava lá, do outro lado. Ou como os mortais gostavam de chamar: o Olimpo, a Casa dos Deuses. No alto da montanha podia ver a grande morada deles ‒ apenas um grande salão de pedra sem paredes, com doze portais vazios; para além, nebulosas coloriam o céu noturno com nuanças roxas e púrpuras. E as estrelas? Ah, elas moldavam os doze signos do zodíaco com a mesma perícia de um joalheiro profissional. Sileno admitia que aquele cenário era belo.
Cada pórtico era representado por um símbolo. À procura de um em particular, Sileno esquadrinhou o chão de pedra, até descobrir os contornos gastos de um grifo. Olhou para o céu no fundo do portal: a constelação de Libra reluzia em pequenos diamantes.
— Apolo — chamou Sileno. Suas mãos tremiam em expectativa.
Ele aguardou alguns minutos, até escutar passos vindos além do portal. Ali, diante dele, apareceu um homem. Usava apenas um manto escondendo os ombros. Os músculos perfeitamente delineados eram um elogio à sua beleza eterna e juventude. Apolo parecia bem à vontade diante de seu visitante. Sileno sentiu inveja daquela perfeição, ciente de que o deus gostava de se exibir.
— Quanta ironia do imprevisível destino! — disse Apolo; na voz pomposa, uma nota de provocação. — O que fez o ingrato herdeiro de Pã deixar a vida mundana dos mortais?
Sileno preferiu não rebater. Conhecia a fama de Apolo, cheio de si mesmo, ego inflado. Engoliu uma resposta insolente e respondeu, no tom mais humilde possível:
— Vim pedir apenas um favor, Apolo. Quero dizer, acho que é algo maior que um favor...
O deus logo abriu um sorriso, que o deixou ainda mais jovem. Sinal de alerta. Sileno teria de tomar cuidado.
— Ah. Achei que já tinha tudo, Sileno. Não está satisfeito? O fato dos mortais não acreditarem mais em nós não quer dizer que deixamos de vigiá-los. Vi que tem aproveitado bastante entre eles...
O fauno já entendia a pretensão de Apolo; queria expô-lo ao ridículo. Este já sabia o que ele queria, mas não perderia a oportunidade de se divertir.
— Sim, tenho aproveitado muito. Os mortais são seres curiosos: se acostumam facilmente com a desordem; condenam o luxo que poucos têm, ao mesmo tempo querendo tê-lo. Também se organizam em grupos que acreditam em um só deus! E matam por isso...
— Sabe, Sileno, os mortais também têm um lado que me fascina — interrompeu Apolo, sem dar valor à opinião do outro. — São oscilantes; sentem amor e no instante seguinte apenas ódio. Vivem em extremos distantes, aproveitando tudo até esgotarem a última gota da razão que lhes é dada, tudo em nome da liberdade que dizem com orgulho carregar. Aposto, Sileno, que o que você encontrou entre eles foi esse abismo, o fundo de um buraco negro que não conhecia e que descobriu dentro do próprio coração.
Era como se Apolo tivesse esbofeteado sua cara. Sileno demonstrou sua vergonha e humilhação no olhar acovardado.
— Você sucumbiu por uma mortal — golpeou o deus, com misto de pena, asco e superioridade.
— Eu a amo. — Sileno o encarou, sem pestanejar.
Essa verdade calou um riso de Apolo, que se viu chocado.
— E ela não o quis! — rebateu o deus, irônico.
— Ela me quer! Ela me ama! — afirmou Sileno, convicto.
— Mas para esse amor se concretizar há uma condição, não é? Vamos, Sileno, chega de rodeios, apenas peça — disse com falsa benevolência.
O rapaz, o fauno filho de Pã, deixou-se vencer:
— Quero ser perfeito para Clair. Quero que me torne um mortal.
Apolo esboçou um sorriso terno, como se dirigisse a um filho seu. Xeque-mate.
— Eu o faria, Sileno. Mas com uma condição.
Ele assentiu.
— Quero a Flauta de Pã.
Sileno aguardava alguma barganha, mas não envolvendo algo tão precioso.
— Apolo, você enlouqueceu? A Flauta do meu pai? Isso é impossível!
— É perfeitamente possível, Sileno — redarguiu o deus calmamente. — Proponha um desafio musical: eu emprestarei a você minha lira. Pã não se recusaria mostrar seus dotes musicais; sei como ele tem orgulho disso. Se ele perder, perde a Flauta.
— E se ele se recusar a entregá-la?
— Mate-o.
Sileno pensou naquela condição imposta por Apolo, a única maneira de obter a mortalidade. Considerou consultar outros deuses, mas cada um pediria seu preço. O caminho sempre seria o mesmo.
— Eu aceito.
Apolo abriu seu belo sorriso. Do manto, tirou uma lira, o arco adornado em ouro.
— Vi o que sabe fazer com a música. Ela tem poder em suas mãos.
O deus entregou o instrumento a Sileno, que o acolheu com delicadeza. Das cordas, permitiu-se apenas arrancar uma nota. Esta saiu miúda, mas seu eco tomou todo o espaço como uma gota que cai num lago.
— Perfeito — extasiou-se Apolo.
Sileno agradeceu com um aceno. Tinha consciência do talento para a música. Seus dedos moldavam a melodia como os deuses moldavam o universo. Cada nota curvava-se ao seu capricho; os acordes vibravam em êxtase. A música era sua amante perfeita, antes de conhecer Clair.
— Traga-me a Flauta de Pã. Ele é um excelente músico, mas sei que você é melhor. — disse Apolo, antes de Sileno partir.
E ele seria.
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CLAIR DE LUNE
Short StoryUma vez sonhei com um jovem e belo fauno. Seu rosto paralisado só me dizia que ele tinha fugido das terras verdes de seu pai, um grande deus. Vivia escondido e estava apaixonado. Seu amor era impossível. Então, eu escrevi esta história. Seja bem-vi...