Capítulo 29

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Marisol e eu ficamos conversando por um bom tempo. Contei para ela sobre o antigo envolvimento de Pietro e Vitória, o que rendeu muitos xingamentos da parte da minha amiga. Fiquei satisfeita quando ela me contou que tinha se resolvido com Raymond, dando a ele a escolha, assumia de vez que estavam juntos ou sumia da vida dela. Ray foi esperto o suficiente para fazer a escolha certa e agora eles estavam oficialmente namorando. O que me fez ficar feliz por Sol, mas triste por Diego, eu podia não conhece-lo, mas era bem claro que ele gostava dela.
Sol foi embora logo após o jantar, depois de minha mãe convence-la a ficar e comer conosco, algo a que ela não ofereceu muita resistência. Assim que ajudei minha mãe a tirar a mesa, entreguei para ela o saco de ervas e contei o que Pietro tinha me falado. Como se fosse algo obvio, ela bateu na própria testa enquanto pegava o saco das minhas mãos.
—Como pude esquecer? – perguntou para si mesma. – Adelaide tem mesmo uma estufa de ervas maravilhosas. Vou preparar o chá e depois levo lá no quarto para você.
Sorri para ela e beijei seu rosto.
—Obrigado, mãe.
Subi as escadas e fui direto para o meu quarto tomar um banho. Mesmo com o cochilo do meio do dia eu ainda me sentia cansada e com o corpo dolorido, um efeito irritante da gripe. Assim que sai do banheiro, peguei meu caderno de desenhos e me enrolei debaixo das cobertas enquanto esperava minha mãe. Rascunhei formas aleatórias e fiquei perdida nos traços até que minha mãe apareceu com uma xicara fumegante de chá na minha frente.
—Ta do jeito que você gosta. – falou.
—Obrigado, mãe. – falei. – Espero que ele me ajude a melhorar. Não quero conhecer a namorada do Jake com cara de quem está morrendo.
Minha mãe alisou meus cabelos e beijou minha testa, aproveitando para checar minha temperatura.
—Você não vai ficar cem por cento, mas vai ficar bem melhor. Boa noite, querida.
—Boa noite, mamãe.
Ela sorriu para mim e saiu do quarto. Fiquei ali bebendo meu chá aos poucos, tomando cuidado para não me queimar e desenhando sem realmente prestar atenção no que estava fazendo. Não me lembro se coloquei a caneca na mesa de cabeceira, nem mesmo se empurrei meu caderno de lado, apenas me ajeitei melhor em meus travesseiros e, sem que notasse, já estava dormindo.

Olhei admirada para o lindo campo a minha frente. A grama era de um verde vibrante, as árvores tinham folhas frondosas e frutas que pareciam saborosos, flores de variadas espécies decoravam o chão aleatoriamente e os pássaros cantavam uma melodia agradável. As montanhas mais ao longe tinham picos cobertos de neve e atrás delas o sol dava sua última amostra de luminosidade em um crepúsculo de tirar o fôlego. Era uma linda vista.
A barra do vestido se enroscava nas minhas pernas, agitado pela brisa. O vestido era branco e esvoaçante, um cinto bordado de forma complexa se espalhava pela cintura e o começo dos meus seios com pedras douradas e transparentes. Era o tipo de roupa que eu veria em mulheres medievais. Meu cabelo chicoteava no meu rosto e meus pés descalços se perdiam na grama macia.
Sorri para a vista e comecei a andar quando escutei o primeiro grito. Não de dor ou tristeza, mas aquele tipo de grito que pessoas no campo de guerra dão antes de morrer. Girei a procura da pessoa e meu olhar se paralisou no vale atrás de mim. O que antes devia ter sido uma vista capaz de emocionar qualquer pintor, agora era o pior cenário de guerra que alguém poderia ver. Casas eram consumidas pelo fogo e outras já se encontravam em ruínas, muros estavam derrubados e torres caiam como se fossem feitas de papel.
Por onde quer que se olhasse era possível encontrar corpos. Suas mortes eram retratadas das mais variadas e cruéis formas, sendo empalados por lanças ou perfurados por espadas. Alguns corpos estavam empilhados, como se tivessem sido empurrados para os lados para não atrapalhar o caminho. O sangue encharcava a grama e as pedras do chão da cidade, dando uma nova cor até mesmo para as paredes brancas.
O tinir de espadas e o grito dos derrotados se fundia com o clamar dos feridos em um som agoniante. Guerreiros batalhavam contra pessoas que se moviam como borrões e outras que irradiavam luz, criaturas de forma lupina e outras que eu nem podia nomear, que tinham uma aparência horrível demais até mesmo para se olhar. Mas, mesmo com a massa de criaturas e a alta taxa de baixas, os guerreiros não desistiam e muitos menos hesitavam. No momento que um caia, outro atacava em seu lugar.  No meio de toda a confusão dois guerreiros se destacavam, estavam de costas um para o outro, se cobrindo. Cada um de seus movimentos era harmoniosos e precisos, como se ambos combinassem cada golpe. A forma como seus corpos se moviam deixava claro que já eram companheiros de guerra a um bom tempo.
O homem tinha cabelos negros com a noite, eles eram balançados pelo vento e se colavam no ferimento em seu rosto. Seus traços eram fortes e altivos, belos. Os olhos eram azuis como o céu, tinham um olhar penetrante e feroz que era capaz de fazer qualquer inimigo recuar. Parte de seu rosto estava coberto por sangue, mas nem isso ofuscava a fascinação que ele exercia. Seu corpo era esguio e musculoso, como era de se esperar de um guerreiro. Os restos da armadura de bronze brilhava a luz do sol poente, suja de fuligem, sangue e coisas que eu nem sabia dizer o que eram. Sua calça estava um pouco rasgada e queimada, a perna direita se movendo de maneira mais lenta cada vez que ele aparava ou desferia um golpe.
A mulher ao seu lado não deixava dúvidas de que era uma guerreira. Seu corpo era ágil e esguio, coberta por uma armadura semelhante a de seu companheiro, mas com um brasão que estava coberto de cinzas, evitando que eu distinguisse qual era a sua forma. Seu cabelo era castanho e escapava de seu rabo de cavalo, fazendo com que fios grudassem em seu rosto, se misturando a fuligem e ao sangue. Seus traços eram suaves e tinham uma harmonia fora do comum. Mas o que realmente chamava atenção eram seus olhos, tão azuis quanto o céu de um dia de verão e tão duros quanto safiras. A concentração e a selvageria brilhavam neles.
Fiquei hipnotizada pelo casal até que os olhos da garota se encontraram com os meus.
—Não permita que isso se repita. – falou em uma voz suave.
Franzi a testa.
—Como assim?
Ela se virou para mim e me encarou com firmeza, como se quisesse fixar suas palavras em minha mente através do olhar.
—A guerra perdura a anos nas sombras e agora quer ir para a luz. Evite a guerra, restaure o equilíbrio e evite que isso aconteça. – falou apontando os corpos de seus companheiros. – Escolhas precisam ser feitas, algumas que beiram o impossível. Muitos lhe dirão o que fazer, mas no final a escolha cabe somente a você.
—Não entendo. – falei com desespero. – Porque isso?
—Os corajosos confiam no destino. Os dignos escolhem por qual caminho trilhar, não importa o quanto seja doloroso. – falou. – Lembre-se sempre disso.
Dei um passo à frente e senti algo incomodo queimar em meu peito.
—Porque eu? – perguntei.
Ela olhou para o seu companheiro e, numa demonstração clara dos anos de convivência, trocaram um entendimento sem nenhuma palavra. Ele olhou para mim com seriedade, seus olhos remexendo alguma de minhas lembranças que eu não conseguia acessar.
—Você saberá. – falou com a voz grave e firme. – Quando estiver pronta.
Então, sem que eu tivesse tempo para falar mais alguma coisa, a mulher se afastou, abriu os braços e fechou os olhos enquanto sem nenhum motivo aparente, seu corpo irrompeu em chamas. Dei um passo atrás sentindo o calor das chamas arder em minha pele enquanto no lugar onde antes estava a garota, um enorme pássaro flamejante, com raios azuis no meio das chamas, surgia.
Eu não senti medo da grande ave, pelo contrário de tudo, ela me passou uma segurança que eu nunca tinha sentido na vida.

Meu Último Suspiro - O início - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora