Lembro muito bem da primeira vez que fui a um cemitério.
Naquele dia, tia Alice chegou cedo em casa. Se aproximou de minha mãe e falou algumas palavras que saiam abafadas no meio de um abraço apertado das duas. Ainda segurando a irmã pelos braços e oferecendo-lhe um meio sorriso, ela usou o polegar para enxugar-lhe uma lágrima que escorria solitária pelo rosto. Depois, foi a minha vez. Tia Alice pousou as duas mãos nas minhas bochechas e, sem apertá-las, disse que eu precisava ser forte. As duas foram para a cozinha tomar café, deixando eu, minha irmã e meu primo na sala.
- O que você vai fazer agora que seu pai morreu? - me perguntou Caio.
Não sei direito o que respondi, mas tenho certeza que essa foi a pergunta. Passadas três horas desde que minha mãe atendera o telefonema do hospital, meu primo foi a primeira pessoa a me dizer diretamente que meu pai estava morto. Era esse o motivo para ele e tia Alice estarem ali em casa numa terça-feira. Nos últimos anos, suas visitas haviam se tornado menos frequentes e restritas a tardes de domingo. Foi por isso também que minha mãe mandou colocarmos roupas boas e disse que faltaríamos na escola.
Nos últimos três meses eu só via meu pai no hospital. Quando não estava dormindo, ele estava resmungando ou xingando alguém. Minha mãe dizia que era por causa da doença, mas, na minha memória, era assim também antes daquele problema de saúde, quando morávamos todos juntos. No hospital ele não podia beber, o que, embora pareça uma vantagem, deixava-o ainda mais irritado. Teve uma vez que ele arremessou um copo de vidro na parede só porque caiu um pouco de suco no lençol da cama. Disse que a culpa era minha, gritou que eu não sabia fazer nada direito, mas foi a tremedeira dele que fez o suco cair quando eu estava servindo.
Às vezes, por causa da escola e do trabalho da minha mãe, eu não conseguia visitá-lo no hospital. Não me fazia falta. Minha irmã já era mais apegada. Não sei se é porque todo mundo dizia que ela era a cara dele, ou porque ele não gritava tanto com ela, ou porque ela não via minha mãe chorando toda noite, ou só porque ela era mais nova e não entendia as coisas como eu.
Não demorou muito tempo para minha mãe e tia Alice saírem da cozinha e nos levarem para o carro. No velório, uma salinha perto da entrada do cemitério, vi meu pai dentro de um caixão de madeira. A expressão dele era muito séria. Fiquei com a impressão de que ele só fingia que estava dormindo e que, a qualquer momento, ia se levantar para brigar com a gente. Passei a maior parte do tempo com minha irmã do lado de fora daquela sala, procurando passarinhos nas árvores do cemitério. De tão indiferente, ela parecia não entender direito o motivo de tudo aquilo.
Como ninguém mais apareceu, logo nós cinco estávamos andando atrás do caixão para o lugar do enterro.
- Nem a mãe dele vai vir? - tia Alice perguntou baixinho para minha mãe, mas não consegui entender direito a resposta.
Mais dez minutos e não havia mais nada o que ver ali. No caminho de volta até o carro, minha mãe soltou um suspiro, deixou os ombros caírem e deu uma risada. Fazia anos que eu não ouvia ela rindo. Ela agarrou minha irmã e eu de um jeito caloroso, como se não nos visse há anos, e nos disse que estava tudo bem. Logo, estava gargalhando.
Antes de entrar no carro e voltar para casa, ouvi um coveiro falar para o outro que nunca tinha visto um enterro tão frio e sem sentimentos:
- Parece que ninguém nem conhecia o morto - foi a frase dele.
Na minha cabeça, enquanto empurrava minha irmã para o lugar do meio no banco de trás do carro da tia Alice, pensei que o enterro tinha sido daquele jeito justamente porque todo mundo ali conhecia muito bem o morto.
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Reticências
Short StoryTem muitos jeitos diferentes de ser uma pessoa. Esses contos mostram alguns deles.