Vinga o Despacho

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Sete metros adiante, pego a direita no cruzamento. Para chegar, avanço três quadras.

À terceira quadra, conto seis passos e paro. Tenho uma mochila nas costas; pesada e desconfortável, preciso de um estranho movimento para tirá-la sem que nada se quebre ou espalhe. Coloquei, todo cautela, a mochila no chão. Ao redor o silêncio. No silêncio, tiquetaquear. Sem pressa, o relógio trabalha a última dezena das duas.

Busco no bolso traseiro o maço. Apanho um cigarro e fumo os minutos de espera. A mente em aguardo, [tic-tac], é um vazio compassado, pensamentos infundados, nada vinga. Mas o motivo, a entrega, [tic-tac], esse deve, fé no santo que vinga.

Guimba ao chão, hora pronta.

Ajoelhado, testa na parede, pés cruzados, língua dobrada, retiro um lenço treva, estendo-o na diagonal - a ponta que aponta o concreto deve ser dobrada, a linha reta encostada à aresta. Sobre as demais pontas, um recipiente de vidro, comprido, protetor de fogo, com uma vela sanguinolenta dentro; as velas precisam ser acendidas, uma a uma, da esquerda para a direita, cada chama uma oração. A seguir, retiro um crucifixo de madeira, o Cristo enferrujado. Também no bolso pego um canivete de cabo alvo, aciono a lâmina reluzente e faço um pequeno corte na língua, ferida superficial, dor que não vinga, e dou uma lambida na traseira da cruz, sangue na madeira, só então posso deposita-la no centro do lenço, os pés do morto direcionados à parede. Da bolsa retiro uma vasilha de plástico, embrulhada, abro-a, pego três tomates podres e os coloco ao redor da cruz; reservo o caldo de cheiro acre. Pego uma sacola com farofa fresca, temperada, sobra do deliciosíssimo jantar, e faço chover comida sobre o lenço e ao redor dele; o restante deve ser amontoado em um canto qualquer, e depois deve ser solado, endurecido, pirâmide pagã. Ainda preciso oferecer uma garrafa de cachaça ao santo, vidro escuro, desrotulada e desrolhada, para alegra-lo e ele fazer vingar a causa. O líquido que escorreu das chagas do tomate deve ser derramado dentro da garrafa de cachaça, e quando pousarem as moscas, e ali ovularem, é que a entidade toma posse do que é seu. Por fim, um frasco, rechonchudo, é a parte final: nele contém o sangue envelhecido de um cordeiro jovem de pelos noturnos, e que o santo não deixou coagular; sangue que deve ser despejado, entrerrézas, sobre a pirâmide de farofa solada, de modo a espalhar-se pelo lenço, terror em flerte com a escuridão.

Mochila nas costas, ponho-me de pé e acendo outro cigarro. Ouço zoar o zumbido das moscas a botarem os seus ovos. E então dou uma profunda tragada. Dou as costas para o trabalho, ameaço sorriso satisfeito e o evito com o cigarro preso aos dentes laterais. Sinto a brisa da madrugada, fresca quase fria, a bailar com os cabelos expostos do corpo. No tiquetaquear do momento, percebo que a brisa avança para a esquerda, quase diagonalmente. Também nesse vazio, o tempo de permanência da nuvem cinza tragada, [tic-tac tic-tac tic-tac tic-tac], um vento atinge o meu corpo, em destaque, direção contrária, quente, letal feito chama explodida. As pernas fraquejam e meus joelhos atingem violentamente o chão. Há dor e sangue. Há fumaça tossida.

Uma movimentação doentia, febril, perpassa as ruas por que passei, relampejando clarões nas encruzilhadas. Nove vozes assombram meus ouvidos e a dor [tic-TAC] vem do relógio, pulso e cabeça. Três vozes são conhecidas e distantes: a minha, que longínqua ecoa, desafina dor > a do santo, mais presente, berra dizeres incompreendidos < a do homem, morador da casa que teve a calçada usada para despacho odioso, ruge o horror a desposar a vida. As outras seis vozes são desconhecidas, horripilantes, dantescas, assombrosas.

A tosse, endiabrada, torna-se portal para a dimensão desprezível que é o abismo desconhecido, o poço da imensidade desvivida. O esqueleto agora é bambo, a proteção falhou, a rigidez ruiu. O existir, acusado de assassinato por bruxaria, como as místicas mulheres da inquisição, queimou na chama que por mim nunca foi vista; ele agora é fugitivo a se esconder nos becos flamejantes do caos, até que a chama morra cinzas, e o vermelho-alaranjado morra, em duas vidas, escuridão.

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