Um conto, não conta tudo o que já foi contado neste quarto.

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É um cair de noite como os outros, a escuridão é protagonista em meu quarto sem janelas e os grilos angustiados quebram de maneira harmoniosa o silêncio que com ardor tento cultivar. Há muito tempo espero esta terça-feira, a perspectiva que tenho das próximas horas anima minha alma, de uma maneira indizível, de uma forma jamais imaginada antes. "Silêncio..." Penso de maneira expressiva, mas sei que é improvável que tal desejo se realize, não espero perfeição no cenário metódico que preparei para os acontecimentos que virão.

Escuto o ranger da porta da sala, devem ser eles, mas tudo está tranquilo, isso também era previsível. Sei que não há nada capaz de impedir o espetáculo inigualável que encenarei essa noite. Ouço movimentos pela casa, ouço os sussurros ininteligíveis seguidos de gargalhadas, provavelmente estão recordando o programa da noite, o tal programa que eu recusei por não ter capacidade de encarar os mesmos rostos, as mesmas faces cínicas, os mesmos discursos hipócritas. Irrelevante! Eles não lamentam, eles não sentem minha falta; mas por que sentiriam? Meu silêncio é tudo o que eles ainda conseguem obter e tenho certeza que eles nunca desejaram mais do que isso.

Sinto-me estranho, mas é um estranhamento diferente, algo que supera a inquieta estranheza que carrego há muito tempo. Eles são meus pais. São meus tios, são meus primos... Mas por quê? Por que não sinto o que eles sentem? Por que não compartilho desmedidamente as afeições e carícias que rodeiam os almoços dominicais? Por quê?

Deixem-os para lá. Não se importem. Eles não são importantes para o que está por vir. Os livros estão ordenados perfeitamente sobre a mesa. A caneta, o papel, o elixir da juventudade e as sementes da inspiração, já estão em seus devidos lugares. O que farei então? Uma carta às gerações futuras? Um poema que será esquecido juntamente com as traças que habitam meu quarto? Não, farei melhor, darei ao mundo a verossimilhança de minhas memórias.

Sinto-me confuso, o senso crítico de meu ser pensante decide não se calar nesta hora: Afinal, do que estamos falando? Que memórias um homem como eu tem para deixar? A fotografia de formatura que envelhece lentamente na parede desse quarto? Os diplomas acadêmicos de uma vida sem conquistas? Não consigo alcançar todas as tonalidades de cores com as quais um dia pintei os detalhes de minha estrada. O que contarei então? Nada é verdade depois de acontecido, tudo é simplesmente opaco um segundo após ter nascido. A minha vida não pode ser contada, minhas memórias não são o que vivi... Bate um desespero, uma lágrima consoladora cai lentamente sem pedir permissão, não me pergunta em nenhum momento se toda esta agonia é um lamento ou simplesmente algo que eu ainda não sei nomear. Esqueçamos as memórias, fiquemos com o lírico, o eu-poético, a entidade magnífica que se tornará simulacro de minha dor.

Sento na cadeira que foi presente de minha avó, escuto o escandaloso ranger de sua estrutura envelhecida, mas não me preocupo; eles não estão me ouvindo, não imaginam o que acontecerá essa noite. Ah, que maravilha! Sinto o primeiro verso do poema sem título que pretendo escrever até o último ponto. Posiciono o papel a minha frente, engulo a primeira semente da envolvente musa e sorvo lentamente o líquido que me proporcionará o gozo da eternidade. Então escrevo:

"Quando acabar esta noite não haverá solidão"

Solidão... Talvez, essa seja a palavra mais importante da minha vida, a que menos expressei, mas a que mais senti. Eu sei exatamente o que será escrito, não tenho dúvidas sobre as palavras que deixarei ecoando sobre o papel essa noite, após degustar o último fragmento de minha musa, beber a última gota do líquido transparente que excita o resgate truncado de um passado que às vezes me parece inexistente. Eu vasculho a memória como um homem que tenta encontrar riqueza no lixo, porém me parece algo inútil, todas as lembranças invocadas no torpor desse momento incomparável, somente reforçam a decisão que tomei há muito tempo, mas que só agora decidi executar.

Um conto, não conta tudo o que já foi contado neste quartoOnde histórias criam vida. Descubra agora