Capítulo IX

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IX

Cheguei, por fim, a outra cena da minha vida. Certa vez, perto do meio-dia, quando ia visitar a canoa surpreendi-me de um modo estranho ao descobrir na areia o vestígio recente de um pé descalço. Parei de repente, como fendo por um raio ou como se tivesse visto alguma aparição. Pus-me à escuta, dirigi o olhar em meu redor, mas nada ouvi, nem vi. Subi a uma pequena colina para descobrir mais terreno; desci depois e percorri toda a costa, mas não divisei nenhum outro vestígio humano, para além do que já apontei. Voltei ainda a examinar as marcas para ver se haveria mais e assegurar-me de que não era uma ilusão; mas não me tinha enganado: era exactamente a marca de um pé humano, os dedos, o calcanhar, enfim, todos os sinais de um pé. Como teria chegado àquele sítio? Ignorava-o e nem sequer o podia imaginar. Após inúmeros e agitados pensamentos, regressei à fortificação como um homem perdido, não assentando os pés, como vulgarmente se diz, na terra que pisava. Aterrorizado pelo medo, olhava a cada passo para trás de mim, e tomava por homens as árvores, os arbustos e, finalmente, tudo o que se encontrava a alguma distância. Não é possível descrever as diversas formas que uma imaginação alterada empresta a todos os objectos, nem quantas ideias loucas e pensamentos caprichosos se me• apresentaram à medida que fugia daquela maneira!

Quando cheguei à fortaleza (chamei-a sempre assim devido ao que então aconteceu), penetrei nela como um homem perseguido. Se entrei pela escada, como primeiro tentei, ou pela abertura da rocha, a que dava o nome de porta, é coisa de que não posso recordar-me, pois já nem me lembrava no dia seguinte de manhã; jamais lebre ou raposa se atirou para o seu leito ou toca com mais espanto do que eu sentia quando me encaminhava para meu retiro.

Durante toda a noite não pude conciliar o sono. À medida que o terror me ia abandonando, maior era a minha apreensão, ao contrário do que habitualmente acontece aos animais com medo.

O espanto perturbava-me de tal modo a imaginação que só via coisas horrorosas. Algumas vezes, que se tratava da marca do pé de Satanás, baseando-me nos seguintes pensamentos: Como teria podido um homem chegar àquele local? Onde estava o buque que o trouxera? E as marcas de outros pés? Mas, por outro lado, dizia para comigo:

- Que fim visaria o diabo ao tomar a forma humana?

Porquê deixar o rasto dos seus pés num sítio onde eu podia ter calhado a não vê-lo?

Se desejava aterrorizar-me dispunha de outros meios para me meter medo do que a marca de um pé. Não creio que tivesse sido néscio a ponto de deixar sinais tão equívocos num lugar em que se podia apostar mil contra um em como eu não chegaria a vê-los, pois habitava no outro lado da ilha, e o menor movimento do mar ou o mínimo vento que se levantasse poderia apagar. Nada disto fazia sentido nem com a coisa em si nem com a ideia que geralmente se tem da subtileza do diabo. Semelhante forma de raciocinar afastou-me as apreensões por este lado; mas então ocorreu-me uma ideia talvez ainda mais espantosa: a de que os selvagens do continente, arrastados pelo vento ou pelas correntes, teriam tido necessidade de arribar àquela costa, e que se tinham voltado a ir embora porque sentiriam tão pouca vontade de permanecer nela como eu de vê-los.

Enquanto estas reflexões se me agitavam na mente, dei graças ao Céu por não me ter achado então naquele lado da ilha e por os selvagens não calharem a ver a minha piroga, o que os teria feito suspeitar de que a ilha estava habitada, dando-lhes a ideia de me procurarem. Depois, veio-me à ideia o terrível pensamento de que a minha canoa havia sido descoberta por aquela gente e, dera a conhecer que naquele lugar existiam habitantes; que nesse caso voltariam de certeza, em muito maior número, para me devorarem, e que, se escapasse às suas buscas, encontrariam pelo menos o meu cercado, e haviam de me destroçar a colheita, de me levar o gado, e de me reduzir a morrer de fome.

Robinson Crusoe - Daniel DefoeOnde histórias criam vida. Descubra agora