Havia certo tempo desde que eu tinha me mudado. A casa nova, embora fosse menor, era mais perto do meu trabalho, e esse foi o único motivo que me fez alugar uma casa em um bairro como aquele.
Apesar da localização não ser um grande problema, pois eu passava a maior parte do dia fora de casa, à tensão que um ocasional barulho de tiro ou grito vindo da rua lá em baixo me proporcionava não era de fato agradável.
A senhoria que me alugara o apartamento era o típico estereótipo que se via em filmes, uma mulher viúva e sem muitos afazeres na vida, já que sua única função aparente era andar pelos corredores e criticar os inquilinos.
"Corta o cabelo menino"
"Tatuagem é coisa do demônio minha filha"
Há, porém um detalhe estranho sobre tudo isso. Anos mais tarde, muito tempo depois que me mudei daquele prédio, eu nunca mais consegui encontra-lo novamente; O que é algo um tanto peculiar, já que sua fachada era sua característica mais marcante. Mas eu sequer conseguia encontrar a rua em que ele estava situado.
O meu minúsculo quarto era do tamanho padrão dos quartos no prédio, claustrofóbico e com um cheiro de bolor constante.
Consigo me lembrar até hoje das inúmeras voltas do trabalho, quando eu tinha que subir, já cansado, aquele conjunto de escadas que parecia interminável.
Sempre ao chegar, eu tomava um longo banho e ia dormir, tendo quase sempre comido algo no caminho. A cama ficava encostada na parede com uma grande infiltração descendo pelo teto, e paralela a um grande armário de parede com uma porta que nunca fechava completamente.
Nesse dia em especial, havia chovido muito, e minha imunidade baixa havia me agraciado com um ataque de alergia do tipo que eu não tinha desde que era um garoto.
Liguei para o meu chefe e avisei que não poderia trabalhar nesse dia, e ele como um homem compreensivo disse que iria descontar a falta do meu salário.
Como consequência da Alergia, fui acometido por uma enorme enxaqueca. Tomei um forte remédio que peguei com a senhoria. Dormi o dia inteiro e quando acordei, meio grogue, vi que já passava da meia noite. Tentei me levantar, mas aparentemente o efeito do remédio ainda não havia passado por completo.
Havia uma luz colorida que vinha dos outros prédios, característica das grandes cidades, eu nunca a notara, pois sempre dormia muito cedo, e raramente ficava acordado até tarde da noite. A luz entrava parcialmente no quarto pela única janela, dando-lhe o estranho aspecto de um sonho éterio.
Havia um grande silêncio em todo o quarto, mas que se estendia ao apartamento e ao prédio inteiro, e que de alguma forma havia escorrido até a cidade. Não haviam vozes nos corredores, não haviam barulhos de televisões ligadas, nas ruas não se ouvia o barulho de um carro sequer espalhado água ao passar por uma poça no asfalto. Nem mesmo a chuva batendo no vidro da janela produzia som.
Por esse motivo que um barulho vindo de dentro do armário me perturbou profundamente. Não era um som constante, mas sim leves batidas periódicas e tímidas.
Quando as ouvi pela primeira vez tive um sobressalto que me fez rolar na cama e terminar totalmente voltado para o armário. A princípio tentei me levantar, mas ainda estava sob o efeito do remédio.
O barulho se repetiu, e eu sequer tive coragem para fechar os olhos; a porta do armário estava encostada e a abertura tinha centímetros de comprimento.
Era inegável que eu não estava mais sozinho naquele aposento, e se havia uma presença sobrenatural, eu não tinha como saber se suas intenções eram boas ou não.
O barulho veio novamente, mas dessa vez era mais intenso e agressivo. Eu considerei a possibilidade de que o barulho estivesse sendo produzido por ratos, mas rato nenhum poderia fazer batidas como aquelas. Eu definitivamente não estava sozinho.
Usando muita força de vontade, minhas mãos tatearam pelo criado mudo a procura do meu telefone, mas eu lembrei então que eu havia deixado o telefone no bolso do meu casaco logo depois de ligar para meu chefe.
Puxei as mãos de volta rapidamente e me cobri de corpo inteiro com o lençol.
Pareceu por alguns instantes que a presença havia desistido e me deixado novamente sozinho na escuridão.
Porém tais pensamentos agradáveis não duraram por muito tempo, e logo eu pude ouvir o barulho de mãos arranhando a porta e as paredes do interior do armário.
Já havia se passado quase uma hora e meia, e o efeito que me prendia a cama ainda estava de pé.
Tentei em vão olhar pela fresta da porta, mas nada era visível naquela escuridão.
Um pensamento sombrio me veio à mente, será que esse ser estava comigo desde que eu comecei a morar naquele lugar? E se sim, por que motivo ele ainda não tinha se manifestado antes?
Tais indagações foram interrompidas quando o ranger da porta soou e ela se abriu mais alguns centímetros. Agora eu via claramente o contorno de um olho me observando; um olho fatal que me observava dormir diariamente.
Me encolhi mais embaixo do lençol, toda a angústia daquele momento parecia que nunca iria acabar. Até que eu pude sentir, algo úmido e gelado me tocou a testa. Um grito de pavor me fugiu da garganta quando me dei conta de que havia sido uma gota d'água que havia se formado devido à infiltração.
Eu dei um suspiro quase aliviado, mas meu coração ainda estava tão acelerado quanto podia.
Já era quase quatro da manhã, em breve o sol iria nascer e eu me livraria de tal sofrimento. Não sabia se ainda estava sob o efeito do remédio, mas eu sequer havia tentado me mover depois do "incidente" com a água.
Eu estava transpirando e tremendo, meus dedos estavam gelados e eu podia sentir o acesso de alergia voltando a meu corpo.
Não pude conter um grande e sonoro espirro, que quebrou completamente o silêncio espiral que parecia envolver o mundo.
Havia agora um pequeno burburinho vindo das ruas, como se depois de uma longa e opressiva noite, o mundo acordasse.
O sol ainda não havia raiado, mas eu estava certo que o pior já tinha passado.
Até que me dei conta de que o burburinho não estava vindo da rua, mas sim de dentro do armário. O sangue correu gelado em minhas veias. Agucei meus sentidos na vã tentativa de discernir alguma palavra que era dita lá dentro.
Surgiu um estranho brilho vermelho vindo da fresta, porem, quando o relógio marcou exatamente quatro da manhã, as vozes pararam e o brilho sumiu.
Olhei para a janela e vi que os primeiros raios de sol já começavam a aparecer. Relaxei meu corpo e me virei na cama.
Nesse momento ouvi um som estridente vindo do armário, a porta fora aberta por dentro de uma maneira violenta, me tirando de meus devaneios.
Pensei nos horrores que me aguardavam, famintos e vorazes, do outro lado do quarto. Senti uma respiração em meu pescoço, e um súbito frio me tomou.
Me virei de uma vez para encarar meus malfeitores, fossem eles vivos ou mortos. Mas percebi que dentro do armário não havia nada além de roupas.
Fechei os olhos por um tempo, e então me sentei na cama, depois fui até a janela e olhei para a rua. Vi maridos se despedindo das esposas, pois partiam para seus trabalhos. Ouvi ainda o disparo de uma arma em algum lugar bem ao longe.
Nunca tinha percebido o quão bonito era o nascer do sol naquele lugar.
Passado certo tempo, voltei a minha cama e dormi.
Por volta das nove horas, eu já havia juntado todos os meus pertences e já estava na calçada esperando o meu táxi. Nem sequer tive o trabalho de me despedir da senhoria, deixei o dinheiro do último pagamento eu um envelope e o coloquei debaixo de sua porta.
O carro chegou, e seu motorista me ajudou a acomodar minhas bagagens.
Quando estava pronto para partir dei uma última e boa olhada naquele prédio, em especial para a janela do meu antigo quarto. Tive a impressão de que o vazio me olhou de volta.
Entrei no carro, e parti sem olhar para trás.
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Contos Insones
HorrorPretendo aproveitar minha dificuldade para dormir e escrever nesse tempo algumas histórias curtas e de temas variados.