O livro das palavras não escritas

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Eu estava na varanda aproveitando os últimos raios do Sol. Admito que negligenciei isso por muito tempo. O campo me ensinou como na cidade grande fazemos tanta coisa sem, de fato, nada ser feito. Sempre estive ocupado demais com algo que não precisasse ser feito ao invés de aproveitando o prazer de viver. Todos os dias eu passava incontáveis horas na internet, lendo sobre tudo e aprendendo nada. Ler os livros de meu avô foi uma experiência que me arrependi muito em não ter antes. Uma coisa era ler em sites aleatórios, mas agora tinha o poder de segurar O Saber em minhas mãos. Mesmo que alguns desses antigos livros trouxessem conhecimento datado ou errado eles eram tácteis, como pequenos monumentos para o Conhecimento, documentos autenticados a respeito das coisas. Nas cinco semanas que eu estive ali consegui ler oito livros inteiros e já terminava o nono quando meu avô me chamou.

- Haroldo, vem cá - O velho apareceu na porta que dava para o quintal com o avental todo sujo de alguma coisa que deveria ser de comer – larga um pouco desse livro e vem me ajudar a terminar a janta. Seus olhos cairão e você nunca mais conseguirá ler.

Sem muita pressa terminei o parágrafo, marquei a página e fui até a cozinha.

- Daqui a pouco não tem mais livro pra você ler – Praguejou meu avô com bom humor enquanto mexia a comida.

- Sopa de novo, vô?

- Você quer comer saladinha? É sopa de novo! Mas sopa não é tudo igual. Essa aqui tem mais carne, bacon e pimenta. Bom pra fazer crescer uns cabelos no seu peito.

Sem entender direito a relação entre esses ingredientes e cabelos no peito perguntei o que eu precisaria fazer para ajudar. Meu avô fechou um pouco a cara, ensaiou dizer alguma coisa, voltou a mexer a sopa e quase um minuto depois me disse em tom bastante sério:

- Me agrada muito ver você empenhado numa atividade tão produtiva quanto leitura, mas com esse campão todo me da um bocado de tristeza ver menino tão novo parado na sombra o dia inteiro.

- Não tenho com quem andar por aí. O senhor mesmo ta toda hora reclamando de dor nos joelhos e, além de tudo, Sol dá câncer.

- Larga de ser bocó, rapaz. Vai aprontar. Do lado de lá da rua tem as filhas do Gersinho que ficam em casa sozinhas o dia inteiro. Você tem que ir lá mostrar toda educação e cordialidade que te ensinei.

- Mas eu não conheço elas.

- É o que acontece quando você fica o dia inteiro lendo ao invés de sociabilizando.

Contra fatos não existem argumentos. Eu realmente queria ser amigável com elas, mas não imaginava uma maneira de ir até sua casa e puxar conversa.

- Mas, vô, elas são novinhas demais pra mim. Não sei se dá certo – E essa foi a melhor desculpa esfarrapada que me veio à cabeça.

O velho por um instante parou de mexer a panela e me lançou um olhar de compaixão, daqueles que amolecem a alma.

- Você tem quatorze anos e elas onze e treze. A mais nova deve ter mais pelinho na buceta do que você no corpo inteiro. E são bem bonitinhas. Mais bonitinhas que sua mão, que ta mais calejada de bater punheta que as minhas de trabalhar com a enxada.

Passamos o jantar debatendo minha inaptidão com garotas e possíveis soluções para esse problema. Impressionante como tantas palavras sábias e sensatas soaram tão vagas e absurdas para mim. Hoje entendo como aquele homem estava muitos níveis acima dos garotos mais pegadores de minha turma. Ele estava definitivamente em outra divisão em se tratando de interagir com mulheres. Os garotos mais avançados de minha idade faziam aviõezinhos de papel enquanto meu avô projetava naves espaciais. Não foi à toa que eu, o maior derrotado de toda molecada, não conseguia entender nada que ele se esforçava em ensinar.

Eu já terminava de escovar os dentes, antes de dormir, quando meu avô me chamou novamente:

- Se depender de você ficará lendo até final de janeiro e nada de aproveitar o campo, por isso te faço uma proposta.

Fez uma pausa enquanto abria um tampo bem escondido na escrivaninha, tirando um livro bem grande, com capa de couro tingida num amarelo lindo de tão vívido.

- Esse é aquele famoso livro que pertencia a sua avó. Amanhã você vai se apresentar pras meninas e convidar elas pra ir até a cidade tomar sorvete. Eu os levo. Se fizer isso te dou esse livro.

Meus olhos quase lacrimejaram de emoção. Ouvi um monte de histórias sobre esse livro, tanto sérias quanto piadas. Resumindo: A vida da minha avó era muito dura. Ela perdeu o pai na Revolução de 1932. Sua mãe morreu quando ainda era bem pequena e minha avó, que não tinha mais ninguém, foi morar em um orfanato. Esse livro foi a única coisa que conseguiu manter. Também ouvi, nas histórias sobre ele, que você só consegue o ler quando estiver pronto, caso contrário só verá páginas em branco. Quando minha avó finalmente conseguiu o ler sua vida mudou totalmente. Concluiu os estudos em uma boa universidade, conheceu meu avô, constituiu família e teve uma exemplar carreira jurídica. Ela sempre dizia que esse livro não só salvou sua vida como também a fez melhor que poderia sonhar. Eu e todo resto da família pensávamos que era só uma história inventada pelos velhos. Então aceitei o plano, mais pelo livro que por qualquer expectativa de me divertir com as meninas.

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