A noite estava gélida, o vento frio tocou seu rosto fazendo-a tremelicar os lábios, ela colocou as mãos enluvadas dentro do bolso do sobretudo na inútil tentativa de aquecê-las.
- Não entendi porquê me chamou até aqui.
Alice virou abruptamente para encarar o dono daquela voz. Ela forçou um sorriso ao avistar a silhueta esguia parada ali.
Ele deu alguns passos na sua direção e parou em sua frente.
- Quer dizer, eu sei que essa montanha nos traz lembranças muito boas, mas acho que não é o melhor lugar para um reencontro, ainda mais com tanto frio.
Alice olhou fixamente em seus olhos, já havia se passado dez anos desde que tudo acontecera, mas ele continuava incrivelmente atraente como nos tempos de escola, apesar de aparentar mais idade, o tempo lhe fizera muito bem.
- Achei que este fosse o lugar ideal para matarmos a saudade, querido.
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos trocando olhares.
- Posso te perguntar um coisa?- Ele quis saber.
- Sim, por que não?
- Não entendo porque mesmo depois de tudo o que aconteceu, você ainda quis me ver. Respondeu sério, sua voz tinha um tom de pesar.
Alice tocou delicadamente o rosto dele com o lado externo da mão, ele fechou os olhos, parecia apreciar a sensação que o contato lhe proporcionava.
- Isso é passado... Nem me lembro mais.
Ele abriu os olhos, por um instante sentiu medo da forma como Alice o encarava, seus movimentos eram mecânicos, ela analisava cada pedacinho do seu rosto com certa adoração, de forma serena, seus grandes olhos azuis pareciam brilhar ainda mais sob a pálida lua.
- Você me chamou aqui para dizer que me perdoou?
Ela pendeu a cabeça para o lado e sorriu.
- Te chamei aqui porque acho que devíamos acertar de uma vez essa história.
Uma ruga apontou entre as sobrancelhas dele.
- Você acabou de dizer que não se lembrava mais dessa história e agora acha que devíamos acertar as contas? Isso me parece um paradoxo.- Disse em tom de brincadeira, tentando afastar aquele frio que lhe percorria a espinha.
Ela se afastou em silêncio e caminhou até a beira do penhasco, quando percebeu que ele continuou estagnado onde estava, olhou por cima do ombro e deu um sorriso sedutor.
- Venha até aqui.
Ele piscou rápido, deu uma olhada em volta, ouvia-se apenas o toque do vento farfalhar as folhas das árvores e o ruído das corujas.
- O que foi? Está com medo de mim? Deixe de bobeira, eu ainda sou a mesma Alice que você...
- Tudo bem.
Ele a interrompeu, evitando que ela dissesse alguma das palavras que o fazia relembrar do seu passado. Deu alguns passos e parou um pouco distante dela imitando seu gesto com as mãos no bolso.
Alice sorriu satisfeita ao vê-lo ao seu lado e voltou sua atenção para o horizonte.
- Sabe, todos esses anos em que morei longe daqui, percebi o quanto este lugar é incrível.
- E por que nunca quis voltar para cá?
- Talvez porque você tenha se casado com outra ao invés de mim, eu não sou masoquista, não suportaria isso.
- Alice, eu...
Dessa vez ela o interrompeu:
- Chorei durante meses por sua causa, foi muito difícil para eu aceitar que você jamais me amaria como te amei, é horrível viver longe de alguém que queremos estar perto... A vida no convento é bem diferente do que a maioria das pessoas pensam, na verdade é um inferno!
Ele a observou de perfil, apesar de sentir um imenso remorso ao ouvir cada uma das palavras que Alice pronunciara, não havia nenhuma expressão no rosto dela.
- Eu sinto muito.
- Sente? - Questionou aparentando surpresa, mas ainda assim, mantendo o tom de voz sereno.
Ele anuiu.
- Acho que sentir muito não muda em nada tudo o que eu passei.
Ele arriscou se aproximar um pouco mais dela.
- Queria muito poder voltar no tempo e fazer as coisas diferentes.
Alice o encarou novamente com aquele sorriso estranho estampado no rosto.
- Acho que essa opção está descartada, a não ser que você seja uma espécie de deus.
- É, eu sei, mas saiba que eu faria de tudo para me redimir com você.
- Tudo?
- Sim, tudo!
Ela virou o corpo para ficar frente a frente com ele.
- Sei de uma forma de você ser redimido.
Ele pareceu respirar aliviado.
- Sabe mesmo?
Ela anuiu.
- Qual?
- Fecha os olhos.
- Fechar os olhos? Mas para quê?
- Você confia em mim?
Ele hesitou por alguns segundos, mas acabou aceitando, afinal, era a Alice, oras! A garota mais dócil, meiga e inocente que já conhecera em toda a sua vida.
- Tudo bem.
Ele fechou os olhos, sentiu quando o corpo dela encostou atrás do seu corpo, ela colocou uma venda em seus olhos.
- Pra que tudo isso?
- Você confia em mim?- Sussurrou em seu ouvido.
- Confio, ué! - Respondeu dando de ombros.
- Então fica tranquilo... Eu vou precisar que você dê alguns passos, ok?
- Ok.
Ela o segurou pela mão, deu uns três passos e parou em seguida.
- Foi aqui, na carroceria da sua caminhonete, que transamos pela primeira vez, lembra?
Ele balançou a cabeça em afirmação.
- Eu passei o resto daquela semana pensando quando me tocaria de novo, tudo aquilo era inédito pra mim, o seu beijo, o toque de suas mãos, seu corpo junto ao meu... - Murmurou próximo ao ouvido dele. - Enfim todas a sensações causadas por você.
Ele engoliu em seco mais uma vez e umedeceu os lábios ressecados pelo frio, aquela brincadeira estava deixando-o excitado, sem a visão, os outros sentidos pareciam mais aflorados.
- Lembra do que você me disse na noite em que me trouxe aqui pela primeira vez?
Ele tentou buscar em suas lembranças, mas não veio nada.
- N- não. - Gaguejou.
- Para eu nunca confiar em ninguém.
- E por que eu disse isso?
- Bom, você havia me convidado para ver o pôr do sol, mas na verdade, era só uma desculpa para me enganar e me trazer aqui para transar com você.
Ele sorriu. Pouco a pouco foi relembrando-se dos detalhes daquela noite. Apesar das circunstâncias, até que tinha sido bem prazeroso os momentos com ela.
Por um instante, parecia que Alice havia se afastado. A quietude reinou, naquele momento, nem mesmo o vento ou as corujas ousaram romper o silêncio.
- Alice?
Não obteve resposta.
- Alice? - Dessa vez, ele elevou a voz e tocou a venda para retirá-la.
Ele ouviu um galho seco sendo quebrado com o pé.
- Estou aqui, querido. - Ela respondeu impedindo que ele retirasse a venda tocando as mãos dele sobre seu rosto.
Ele sorriu aliviado e relaxou a postura.
- Achei que tivesse ido embora.
Ela não respondeu, mas sentiu as mãos dela deslizarem delicadamente por suas costas.
- Sabe, você tinha razão.
- Sobre o quê?
- Nunca confie em ninguém...- Ele não teve tempo de reagir. Alice, num movimento rápido, pressionou suas mãos contra as costas dele e o empurrou no precipício.- Nunca confie em ninguém, querido.- Repetiu, dessa vez, para ela mesma.
Enquanto os gritos dele ecoavam durante a queda livre, ela assistiu o seu trajeto até não ouvir mais o som da sua voz. Deu uma última olhadela lá embaixo, em seguida, afastou-se, colocando as mãos no bolso tentando proteger-se do frio, tinha certeza que naquela madrugada chegaria a temperaturas negativas.
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Nunca faça uma garota chorar
Short StoryPense bem antes de magoar uma garota, ela pode querer se vingar...