Capítulo 1

28 2 0
                                    

Aquele era o seu pior inimigo. O mais cruel, o mais cínico, o mais sem piedade. Um inimigo que falava a verdade. Sempre. Sempre a verdade. Toda aquela verdade que Allycia conhecia muito bem e que nunca a abandonava.

Ainda com a escova de cabelo na mão, ela não podia deixar de encará-lo. Lá estava ele, encarando Allycia de volta, com os próprios olhos da menina. De um lado, eles estavam molhados. Do outro, refletiam-se gelados, vítreos, impiedosos.

— Feia...

Allycia sufocou um soluço.

— Gorducha...

Uma lágrima formou-se na pontinha da pálpebra.

— Que óculos horrorosos...

Como um bichinho que foge, a lágrima saiu da toca e foi esconder-se no aro dos

óculos.

— Você plantou uma rosa no nariz, é?

— Cale a boca... por favor...

Já mais grossa, a lágrima livrou-se dos óculos e escorreu pelo rosto de Allycia.

— Sabe que essa rosa vai ficar amarela? Amarela e grande... --A lágrima penetrou-lhe pelos lábios e Allycia reconheceu aquele gosto salgado, tão comum e tão amargo em momentos como aquele.

— Por favor... me deixe em paz...

— Você vai espremer a rosa amarela. O seu nariz vai inchar... Os lábios de Allycia, molhados, sem palavras. Aquela garota que sempre tinha resposta para tudo, sempre uma gozação na hora certa, uma tirada de gênio que deixava qualquer provocador sem graça, não sabia o que dizer quando seu grande inimigo apontava sadicamente cada ponto fraco que havia para apontar.

—... e você vai ter vergonha de voltar às aulas na semana que vem...

— Cale a boca!

A raiva foi tanta que a escova de cabelo voou com força, acertando o inimigo em cheio, bem na cara.

— Allycia! Venha cá. Morreu aí no banheiro, é?

A voz penetrou-lhe os ouvidos como uma campainha de despertador. A voz irritante da mãe. Estridente como uma campainha. Devia estar com enxaqueca, é claro. Na certa ia reclamar de alguma coisa, exigir que a filha respeitasse pelo menos sua dor de cabeça, queixar-se de...

O combate com o inimigo estava suspenso, por hora. Allycia sacudiu a cabeça, como se despertasse, e esfregou o rosto, apagando as marcas da luta.

Uma última olhada para o inimigo. Ele a olhou de volta, agora com uma rachadura de alto a baixo.

"Sete anos de azar!", pensou Allycia. "Ah, o que são sete, para quem já viveu quatorze dos anos mais azarados do mundo?''

— Allycia! — ainda mais irritada, a voz da mãe invadiu o banheiro. — Não me ouviu chamar?

"Quatorze anos de azar!" ainda pensava a menina ao abrir a porta. "Será que a minha mãe quebrou dois espelhos quando eu nasci?"

O0o0o0o0o

Com as mãos, a mãe apertava as têmporas, como se a cabeça fosse cair, se ela a largasse.

— Você sabe que eu não posso gritar Allycia. Você devia...

— Está bem, mãe. O que você quer?

— Ai, ai. Tia Milena acabou de telefonar. È o aniversário do Dez e ela faz

questão que você vá.

— Dez? Que Dez?

— O seu primo, ora. Não se lembra do Dez? Vocês brincavam tanto...

— Ah, mãe! Isso já faz um século...

— É, faz tempo mesmo. Também,Milena foi casar-se com um homem que não pára em nenhum lugar! Não sei o que tanto tem aquele sujeito de mudar-se de cidade. Mas parece que desta vez vai sossegar. Ele está bem de vida, agora. Montou uma casa que é uma beleza. Milena vai fazer uma festa para o Dez que...

— Que droga! Aniversário de criança!

— Dez faz dezesseis anos,Allycia

— Eu não quero ir.

— Não discuta,Allycia. Minha cabeça está me matando...

O0o0o0o0o0o0

— É claro que eu vou! — concordou Trish, do outro lado da linha. — As férias estão no fim mesmo, e os programas andam raros. Acho até gozado: sempre sou eu quem tem de arrastar você para alguma festa. Você sempre arranja uma desculpa, tem sempre que estudar...

— Acontece que eu não quero ir sozinha, Trish — desculpou-se Allycia, como se estivesse convidando a amiga para uma sessão de tortura. — Minha mãe exige que eu vá. É o aniversário do Dez, um primo que eu não vejo há anos. Dizem que sempre foi o melhor aluno da classe. Um chato! E o pior é que ele foi transferido para o nosso colégio. A partir de segunda-feira vou ter de conviver com o chatinho a vida inteira. Faltam só dois dias... A festa deve ser tão chata quanto ele. A gente fica só um pouquinho e...

— Já disse que vou, Allycia. Uma festa é uma festa. E esta não deve ser mais chata do que as outras...

O0o0o0o0o0o0o0o

Lá estava ele de novo. O inimigo, agora rachado de cima a baixo, dizendo para Allycia que ela ficava medonha com aquela blusa, que seu cabelo estava um lixo, que todo mundo ia rir dela na festa...

— Todos riem, não é? Só que eu nunca dou tempo para que riam de mim. Eles têm de rir do que eu digo. Têm de rir comigo, na hora que eu quero que eles riam. Todo mundo ri do que eu digo, não é? Allycia, a grande gozadora! Allycia, a contadora de casos. Vamos, riam todos com Allycia!

Levemente, seus dedos tocaram a face fria do inimigo, bem na rachadura. Lentamente, seus dedos percorreram a rachadura, tateando como um cego que procura reconhecer alguém.

— Todos riem... Mas eu não queria tantos risos. Eu queria um sorriso apenas. Um só. Queria estar quieta e ver alguém aproximar-se, olhando nos meus olhos... sorrindo... Eu sorriria de volta, e nada mais precisaria ser dito...

Allycia deixou as lágrimas correrem fartas pelo rosto. Foi aí que o inimigo resolveu feri-la mais fundo e cortou-lhe o dedo com a borda da rachadura. Num gesto maquina, a menina levou o dedo à boca, chupando o ferimento. Na rachadura, no peito do inimigo, ficou uma gota de sangue.

O dedo não doía quase nada.

Era ali que doía.

Doce Poesia Onde histórias criam vida. Descubra agora