Às vezes só existimos dentro da nossa cabeça, quando fazemos algum disparate que nos dê importância ou quando recordamos o passado, enquanto o silêncio não nos mata aos bocadinhos. Em miúdo, o irmão mais novo do Fanan, que regressara estropiado de Angola, invejava-nos e ficava muito hirto à frente da nossa casa a atirar pedrinhas contra a janela do rés-do-chão, já que não tinha força para atingir o segundo andar, mas sem partir os vidros, era só para nos aborrecer nem sei bem porquê. A minha mãe dizia que era das invejas, que as pessoas tinham o olho gordo e benzia-se com frequência, acabando por comprar uma pequena estatueta da Santa chinesa, que ela achava ser de porcelana, a quem fazia um pedido e lhe retirava a mãozinha, que se desenroscava e só voltava a colocá-la no orifício depois da graça concedida. A vizinha do lado, que publicava anúncios nos jornais a pedir milagres em barda a São Judas Tadeu, desesperada pela falta de respostas, pediu-lhe a santa emprestada por uns dias.
Quem empresta não melhora... E é bem verdade...
Acabou por cedê-la e a amizade terminou no momento em que ela lha devolvera sem a mão. Nunca soube ao certo como acontecera. Apesar de a ter colocado em local seguro, a mãozinha, trabalho fino e precioso de artista, razão de muitos momentos de ansiosa esperança, desaparecera. A minha mãe que queria que eu fosse para médico ou professor, antecipava culpas e atribuía responsabilidades à negligência grosseira da vizinha, o meu pai que colocava no mesmo nível médicos e talhantes, não via nisso grande mal no mundo, desde que fugisse da cultura que não enchia barriga.
Mestre de obras! Mestre de obras é que era bom, engenheiro técnico era ainda melhor!
Nem uma coisa nem outra, que não tinha queda para a régua e esquadro nem estômago para sangue e miudezas. A mãozinha nunca apareceu, a santa perdeu-se na mudança de casa, da vizinha nunca mais houve notícias, assim como de graças concedidas, excepção feita ao milagre de acordar todos os dias, até ao momento...
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A Santa Chinesa
Short StoryÀs vezes só existimos dentro da nossa cabeça, quando fazemos algum disparate que nos dê importância ou quando recordamos o passado, enquanto o silêncio não nos mata aos bocadinhos...