1963

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Voltar para aquele lugar era exatamente o que me faltava para escrever esse relato. Passeando pelos entulhos, as memórias pulavam através do chão, dos escombros e do tempo, e surgiam em minha frente, por todos os lados. Apesar do estado em que a antiga vila se encontrava, para mim era como se nada houvesse realmente mudado — o tanque aqui, o vaso de flor ali, a porta que já não havia sob o batente, os tijolos à vista, na parede quebrada... E mais do que o lugar que eu imaginara, ao pé da escada, me atraiu a casa onde encontrei todos aqueles documentos. O arrependimento de tudo o que fiz com a pessoa que ali morava era quase doce, como são todos aqueles que se referem às travessuras dos tempos de criança, mas, mesmo assim, eu desejava uma nova oportunidade de dizer a ela o quanto eu era grato por todos aqueles anos.

Já não há a parede lateral da casa, como já não há sua moradora, e assim como já não há mais o número branco e nem mesmo a porta onde ele era lido, mas isso não impedia que eu o visse como a uma projeção, exatamente no lugar onde sempre esteve — um mal desenhado 71, à altura dos meus olhos.

Naquela casa eu encontrei, há mais de trinta anos, aqueles papéis que se referiam a outros quatorze anos passados, e as coisas que neles li e que pesquisei e que imaginei por eles inspirado fazem assim minha narrativa voltar ao longínquo começo da década de 60.

* * *

Rubem subiu a rua da editora com as palmas das mãos suando de nervoso, diversamente ao suor do rosto, que nada mais era do que o reflexo do esforço e dos quase quarenta graus. Ainda não sabia do que trataria no prédio que finalmente surgiu à sua frente, mas só podia ser uma única coisa — recusas eram dadas por telefone, carta ou não eram dadas de forma nenhuma, o que apenas contribuía com seu ataque de nervos. Quase automaticamente passou pela recepcionista; apesar de não ter reparado, deve ter dado seu nome automaticamente umas três vezes até ser enfim chamado na sala do editor–chefe.

O homem era pequeno, tinha pelo menos a metade de seu tamanho —o que também não era assim tão incomum— e cara de pelicano asmático. No instante em que Rubem deitou seus olhos sobre ele, teve a certeza de que nada de bom poderia sair de sua boca. Somente após umas dez frases concluídas vagamente, ele conseguiu focalizar sua atenção ao monólogo do homem.

—... então, com todos esses problemas financeiros, nós decidimos dar uma chance para que você procure uma casa mais adequada ao seu manuscrito, que não deixa de ter inúmeros atrativos como obra paradidática. — Rubem olhou para o teto, que começava a descascar a pintura, e respirou fundo.

— Então por que motivo ou causa vocês fizeram com que eu viesse aqui, nessa distância, para ouvir algo que eu poderia ter sido comunicado com um texto pré–escrito?

— Porque temos uma proposta para fazer–lhe, sr. Girafales.

*

— Estou certo de que ele foi por aqui — disse um dos dois homens, o que estava de terno cinzento.

O outro, que parecia um esportista, balançou negativamente a cabeça.

— Vamos então, mas eu não estou tão certo assim.

Assim que ambos se distanciaram, Ramón abaixou o jornal que fingia ler e o deixou para trás, junto com o paletó e o chapéu "emprestados", em cima do banco da praça. Quando estava quase alcançando a esquina, correu para alcançar os disfarces, mas desajeitadamente não conseguiu alcançar tudo; meteu o chapéu na cabeça e o casaco por cima dos ombros e se virou para uma vitrine que exibia televisores novos em folha, bem a tempo de os dois homens passarem às suas costas.

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