Necromante

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Aviso de gatilho: esse texto pode não ser recomendado para pessoas que já viveram uma situação de abuso. A leitura fica por sua conta e risco.

Te vi hoje chorando por mim e confesso que em um momento bateu uma saudade; mas foi só por um momento mesmo. Lembrei dos seus dias iluminados, de humor exultante e a forma como era carinhoso comigo, ainda que sempre me dissesse que eu não merecia. A mão do afeto também era a do tapa. Nas raras ocasiões aonde não me detestava, passava entre minhas pernas e as palavras doces que saíam de nossas bocas.

Eu pedi por isso, eu quis ser sua puta, sua vadia ― sua, apenas. Neguei com amor e paixão fulgurosa todas as palavras duras que diziam sobre você e me foquei no que eu conhecia até então. Eu embarquei de malas e passaporte na sua barca, permiti que me levasse para onde quisesse e pudesse; deixei que fosse o agente do meu destino. E não é que você foi?

Eu amei você enquanto me xingava. Amei você enquanto me batia. Amei você enquanto tirava tudo que eu tinha; não me dou ao trabalho de negar, porque eu te amei. Deixei que me fodesse e a outras de todas as maneiras que conhecia, tudo pela mais simples prova do meu afeto. E quando me disseram para te dar as costas, eu disse "não": uma, duas, três, quatro, mil vezes; o nosso amor superava qualquer olho roxo ou costela quebrada.

Uma pena que já não supera mais.

Nunca chegamos à parte do "até que a morte nos separe", mas ela decidiu fazê-lo mesmo assim. Ou talvez eu devesse dizer: você escolheu. E eu também havia feito o mesmo, ainda que fosse uma decisão diferente.

A única vez em que eu disse "adeus" foi também a última, não é? Você se encarregou de me fazer nunca ir embora, maldito. Até morta: presa a você, não por vontade própria.

Você chorou por mim hoje e depois da saudade, tudo que eu queria fazer era ser livre. Mas nem ao menos isso eu pude ter, afinal, você me reviveu.

E me reviveu apenas para me chamar de puta e me foder incontáveis vezes, enquanto eu assistia duplamente estática. Uma versão de mim fria e com olhos vítreos; a outra, presa a sua própria inexistência sem poder tomar nenhuma ação. Tive contemplar toda a cena em um silêncio mortal e cativo; minha condenação eterna era vê-lo me profanar e soltar gentilezas lacrimosas de arrependimento.

Mas eu jamais demonstraria qualquer sentimento de novo para você ― ao menos não um que pudesse ver. Eu me decompunha sob seu corpo a cada investida e o ódio em mim crescendo como uma bomba que jamais explodiria.

Não importava o quanto tentasse, o quanto chorasse: nunca conseguiria me reviver.

E eu jamais seria livre.

x-x-x

Necromante (Conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora