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Para Julyane, a pessoa que me inspirou a voltar a escrever depois de meses. 


A rua estava deserta, ela andava. Passava por árvores e postes de iluminação pública desligados, tudo era escuridão como em uma noite de lua nova. As trevas estavam a sua frente a perder de vista e as suas costas, em seu encalço. As árvores se cruzavam em suas copas e era impossível ver o céu, mas ela conseguia ver, em suas folhas, a infinita variação de verdes, diferenciáveis até mesmo naquela noite. A sua esquerda, apesar de não conseguir olhar diretamente, ela sabia que a lua estava ali, no céu, iluminando planícies vastas e infindáveis que se estendiam sob o céu limpo onde estrelas brilhavam com o esplendor de milhões de anos atrás. E ela andava. Andava pela rua que seguia rumo ao infinito.

Ela não podia olhar para trás, nem mesmo ousaria fazer isso, a cada passo que dava a escuridão se aproximava às suas costas como se fosse um ser vivo, um predador que segue sua presa em silêncio, esperando para atacar. E ela andava seguindo para um fim que talvez não existisse. Talvez tudo fosse um sonho. Tinha que ser um sonho, o pior de todos os pesadelos que ela já tivera. Tudo o que ela queria era acordar, mas ela andava.

O caminho seguia em direção ao fim do mundo. A terra era plana, mas a escuridão não permitia que ela enxergasse o que estava no fim da rua.

A lua já não estava mais a sua esquerda, mas alta na claraboia celeste em meio a infinidade de estrelas. Quanto havia se passado desde que ela tomara consciência de sua jornada ao infinito? Ela não saberia dizer, talvez horas, dias, anos. As únicas coisas que ela sabia eram que já andava por esse caminho desde antes de haverem árvores, quando tudo não passava de uma planície desértica, e que aquilo não era um sonho. Nenhum sonho poderia durar tanto.

A mudança na cor das folhas sobre a sua cabeça começou de forma tão gradual e espontânea que ela não percebeu, notando isso apenas quando elas já não eram mais verdes, mas amarelas. Um amarelo doentio que passava a impressão de que as árvores estavam doentes, envenenadas, moribundas. E rapidamente, agora que ela estava mais atenta as mudanças, os tons de amarelo doentio escureceram e em alguns instantes se transformaram em folhas negras, possuíam a aparência de que estavam mortas e apodrecendo há muito tempo. As árvores já não era as mesmas, seus troncos não eram mais grossos e robustos, mas coisas esqueléticas que cresciam em direção ao céu, mas nunca o alcançavam. Uma barreira de folhas podres as impedia.

Sem qualquer aviso, tão subitamente quanto ela percebera que estava andando, uma eternidade atrás, o caminho acaba, dando lugar a uma vastidão infindável a sua volta e uma massa negra, uma cidade, a sua frente.

As planícies desérticas se estendem ao infinito, tão lisas quanto improváveis. Seguem de forma ininterrupta até o horizonte onde cadeias de montanhas negras se erguem. Agora, como que livre de um feitiço, ela consegue olhar para trás e vê um deserto tão vasto quanto aquele à sua volta, nenhuma árvore jamais crescera naquelas terras.

E ela continua seu caminho em direção à cidade. A massa negra pouco a pouco começa a tomar forma, com arranha-céus se erguendo contra o céu estrelado e a lua em volta, tal qual um halo solar, na torre mais alta dentre as que se elevavam. Em uma mudança tão mágica quanto o sumiço das árvores, em um piscar de olhos, ela agora estava nos muros da cidade, as margens de um lago.

A cidade possui a aparência de uma construção medieval, uma cidade murada, e ela andou ao longo desse muro, se afastando do lago e procurando por um portão, mantendo sempre a parede de tijolos negros de um lado, quase tocando-os. O lago fica para trás em poucos minutos ou horas, ela já não consegue nem mesmo se lembrar da aparência dele, sabe apenas que a cidade existe às margens de um lago.

Por outro período de tempo que lhe pareceu uma eternidade ela anda ao longo do muro, se não fosse pelo lago que ficara para trás ela acreditaria que não dera um único passo. Mas por fim os portões duplos surgiram diante dela. Muito altos, feitos de barras de ferro negro como se fossem grades. Com suas mãos magras ela segura duas barras para abrir passagem. Sob sua pele o metal inflexível está sendo corroído pela ferrugem, ela sente a crosta áspera nos pontos em que tinta negra dera lugar ao óxido tão negro quanto, era como se o ferro estivesse apodrecendo. Outra coisa que ela notou imediatamente foi que as barras estavam mornas, elas pulsavam emanando calor como se estivessem vivas.

Ao empurrar e puxar o portão, o metal gritou. O portão gritou com aquele som metálico que coisas enferrujadas e há muito esquecidas, coisas que querem ser ouvidas e contar suas histórias ou avisar sobre algo gritam. O barulho infernal fez com que ela pulasse para trás. Pela primeira vez ela viu o nome da cidade, gravada em uma língua amaldiçoada e há muito esquecida sobre o portão, um nome que a perseguia há muito tempo. Um nome de horror.

A cidade se descortinava além dos portões. Casas medievais, seus telhados apodrecendo, casas de pedras tão negras quanto o espaço vazio no céu, casas modernas em ruas de paralelepípedo tão negros quanto as casas. E ao fundo do intrincado labirinto de ruas um castelo se erguia. Suas torres eram arranha-céus que se levantavam acima de toda a cidade. Na torre mais alta a lua continuava parada, como se estivesse solta do céu e presa ao prédio, ainda formava um halo solar como se fosse algum tipo de santo.

A distância, na janela do andar mais alto, ela viu uma figura andando de um lado para o outro. Uma figura alta, vestida com uma capa de um amarelo tão doentio quanto as folhas envenenadas, andando sem parar e no rosto trazia uma máscara pálida. E foi quando ela entrou em pânico. O horror tomou conta do seu corpo, um feitiço havia sido jogado sobre ela. O horror que dava nome a cidade maldita as margens do lago. A cidade governada pelo seu rei de amarelo. O horror chamado Carcosa.

A Cidadela NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora