Capitulo único

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Jogo a terceira caixa no porão. Olho para o espaço escuro e empoeirado e analiso uma das caixas abertas, lá dentro está meu cachecol vermelho, o preferido. Junto dele há o cordão com o pingente de metade de um coração. Pergunto-me onde está a outra metade nesse momento, será que se encontra no fundo de uma mala, no bolso da sua calça ou em uma caixa velha escondida dentro do guarda-roupa? Balanço a cabeça a fim de espantar esse pensamento que parece me atormentar. Que diferença iria fazer? O dono dele não está mais aqui, nem no terceiro quarteirão seguindo a rua de trás e sequer nesse país.

No momento em que recebi sua mensagem senti um mal estar, eu sabia que algo ruim estava prestes a acontecer, meu coração pesou, aquelas palavras tão simples e normais carregavam algo em si que, mesmo sendo transmitidas através de um aplicativo. Eu sabia que ia acabar. Eu sabia que ia acabar. A certeza era uma dor latente no meu peito que ameaçava já escorrer pelos olhos. Como eu sabia, não faço a menor ideia. Mas a sensação estava ali.

Não demorou vinte minutos até sua bicicleta parar em frente a minha casa. Suas mãos sempre tão firmes, tremiam. Seu olhar sempre tão seguro, vacilava ora em meus olhos, ora no quadro da parede ao fundo. Já era. Já tinha acontecido.

Eu sequer sabia do que havia se passado, ou do que ainda se passaria. Mas tem coisas que a gente sente. Do mesmo jeito que me senti ao vê-lo passar no corredor em frente à sala de aula cinco anos atrás, com seu cabelo preto e liso, seus olhos verdes de uma cor que trazia paz só de olhar. Eu sabia naquele momento que daria certo. Eu só não sabia até quando.

- Lis... – Seu olhar parecia apreensivo como nunca tinha visto, o que é sério levando em consideração que estive ao seu lado em diversos momentos ao longo dessa metade de uma década. Estive lá quando seu avô veio a falecer, quando seus pais resolveram jogar fora as alianças e trocar o papel de casamento por um divorcio e quando seu cachorro ficou doente. Estive lá sempre. Segurei aquela mão nos momentos mais tensos. Olhei naqueles olhos nos minutos de aflição. E nada se comparava a expressão que insistia em seu rosto.

- Rô? – Disse com a voz rouca pelo nervosismo. Abri passagem para que ele pudesse entrar, mas ele parecia petrificado na porta.

- Eu sei que eu deveria entrar para termos essa conversa, mas não... não consigo. – Seus olhos estavam cheios de dor. E eu já sabia o que vai acontecer. Não sabia como isso chegou, não sabia o que vai vir depois, mas eu sabia quais seriam suas palavras.

- Rodrigo, fala logo. – A frase saiu com mais grosseria do que eu desejava, mas a essa altura meu coração já parecia querer saltar da boca.

- Eu te falei no fim do ano que tinha mandado currículo para algumas empresas, empresas grandes, multinacionais. – Ele tossiu para tirar a rouquidão que também estava presente em sua voz. – E eu recebi as respostas sexta-feira. Respostas positivas.

- Você é ridículo! – Disse rindo e aliviando toda a pressão que parecia esmagar os meus órgãos. – Sua cara fazer todo esse drama para me contar uma noticia boa e ficar me deixando com vontade de te matar.

- Lis... – Ele abaixa os olhos e vejo que puxou do bolso da calça o que parece ser uma carta amassada. – Não é brincadeira. – Seus olhos verdes, sempre claros e carregados de paz, agora pareciam estar compondo uma tempestade. – Graças à minha grande habilidade com outras línguas, eu fui contratado. Mas não para a sede brasileira, mas sim para ir morar por cinco anos na Inglaterra.

Eu sabia que aquela era uma noticia excelente. E eu sabia que aquela possibilidade de morar fora, exercer sua profissão em um país melhor e em uma cultura diferente sempre esteve na sua cabeça, durante os últimos anos aquela sempre foi sua meta, por mais que ele negasse a mim e a si mesmo, eu sabia. Eu sentia.

E aquilo era a melhor noticia a melhor coisa que já aconteceu em sua vida. Aquilo era mais que a realização de um sonho, mas também a recompensa por todos os esforços. E eu o amava, com todo coração, de toda alma. Por que não poderia ficar feliz com a conquista dele? Por que meu coração parecia estar se quebrando em quinhentos mil pedaços?

Tentei segurar minhas lágrimas e balancei a cabeça em afirmação, tentando forçar um sorriso que saiu completamente trêmulo.

- Esse é o e-mail de confirmação. Também recebi uma ligação. Eu passei o fim de semana inteiro avaliando. São cinco anos, isso foi o tempo que vivemos juntos e passou tão rápido, foi como um piscar de olhos, mas ao pensar em viver cinco anos longe de você eu só penso na eternidade que durará. Em como cada tarde será um castigo. Em como cada manhã será uma penitência. E a cada noite meu coração irá pesar por não te ter perto.

- Rodrigo, por favor... – Ouvir aquelas coisas seria a melhor coisa do mundo para mim, mas não naquele momento, não quando eu sabia que suas palavras estavam carregadas de um adeus incontido em algum lugar.

- Me deixa terminar, Lis. – Ele respira fundo. – Eu estou aqui não para te dar um adeus.

Levanto meus olhos e meu coração dá um pulo. Isso é o que então? O que ele quer de mim?

- Ahhh, não. – Digo quando meu cérebro tem um insight. – Você não vai fazer isso comigo...

- Lis, você tem que me pedir para ficar. – Seus olhos ficaram ainda mais vermelhos e ele respirava fundo e calmamente, controlando-se.

- Não, Rô. Não. – Balancei minha cabeça incessantemente, como uma criança quando não quer lavar seu machucado. – Você não pode me pedir isso. E você não pode fazer isso. Você sabe o quanto te quero por perto, mas não quero que tenha que decidir entre seus sonhos e a mim, não quero que quando olhe para trás daqui a cinco anos você pense em tudo que poderia ter vivido, tudo que poderia ter conhecido e o que poderia ter feito. Não quero que eu seja o peso dos sonhos que não se tornaram a realidade.

- Mas eu não quero ir, não sem ti. – Ele disse com dificuldade.

- É sua vida. Esse papel que você segura é o resultado de seus esforços, é o resultado do que você lutou para conseguir. Você já tem a sua decisão tomada, sua decisão foi tomada há muito tempo, mas só agora a resposta dela chegou. Você sabe disso.

O resto daquele dia passa como uma carta molhada de lagrimas em minhas lembranças. Lembro-me de suas mãos segurando meu rosto, nossas testas se encostando e minhas lagrimas encharcando seus dedos frios em meu rosto. Lembro-me do beijo suave que ele deu, do soluço sem lágrimas que soltou e do olhar de dor que permeou em seu rosto por todos aqueles instantes. Eu não poderia pedir para que ele me escolhesse. Ele sabia que essa não era sua escolha, a dor carregada no rosto já era acusatória de que sua decisão havia sido tomada. E eu não poderia ir contra. Não poderia bater o pé. Os melhores cinco anos da minha vida teriam que caber em três caixas e ficarem bem guardadas dentro de um porão empoeirado, todas as memorias e lembranças ficariam ali, sem me assombrar enquanto eu seguiria com minha vida tentando preencher o buraco que ficou. Era isso. Eu tinha um plano.

Quando respiro fundo, pronta para finalmente sair do porão e deixar minhas lembranças ali naquele cômodo empoeirado, trancado no fundo da casa, escuto um barulho das escadas de madeira que dá acesso ao local onde estou. Meu coração bate forte, mas então imagino que pode ser só minha mãe imaginando se eu estava bem.

Mas antes de me virar eu sinto o cheiro. Não, não pode ser, não vou deixar que minha mente me iluda de tal maneira, não vou deixar minhas pernas derreterem dessa forma porque eu sei que é meu psicológico.

Então sinto sua mão tocando na minha com uma suavidade que só ele, só ele, tem. Respiro fundo e sinto as lágrimas quentes em meu rosto. Antes que eu possa pensar n

o que dizer, sua voz, sussurrada, chega aos meus ouvidos.

- Eu poderia estar no lugar que sempre sonhei agora, indo de encontro a um futuro maravilhoso. Mas nada disso me faria feliz. Tudo aquilo é o que eu sempre quis, de fato. Mas nada se compara ao fato de que é o que eu mais quero hoje, e o que eu mais quero para sempre, é você. É estar do seu lado.


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