Samyaza

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Eu acho que eu nunca contei para ninguém pelo que eu passei. Pelo que estou passando, especificamente. Não creio que eu seja uma pessoa (não que eu seja uma pessoa, realmente) sociável. É difícil arranjar amigos aqui no céu, por mais estranho que pareça. Estamos todos ocupados, quase sempre.

Anjos. Minha família, eu, meus colegas de trabalho. Somos todos anjos. Originalmente, nós - seres alados que guardam o Trono do Senhor, o Trono dEle - não poderíamos nos apaixonar. Quero dizer, não no sentido "somos terminantemente proibidos", mas no sentido "de acordo com a história, a física, tudo que existe, e inclusive e principalmente pelo fato de que não costumamos manter uma relação com os humanos, não dá para nós apaixonarmos". Receio que acabamos de descobrir uma exceção.

Se eu soubesse como começou seria ótimo! Acho que eu nunca mantive nenhum contato com seres humanos, mas naquele dia, especificamente... passou aquele ser humano e pah! Parece que algo deu errado. Me sinto particularmente um ser infrator. Não que eu seja, não soube de nenhum anjo que foi condenado por ter se apaixonado por um mortal, mas também nunca souberam de um anjo que caiu do céu e foi pro inferno antes que acontecesse com Lúcifer, e francamente, né? Nunca foi necessária uma punição para isso porque isso nunca aconteceu antes!

"Positividade, criança" pensei comigo. "Isso só vai te distrair. Você foi feito para servir apenas ao Senhor, o Todo Poderoso, não para dar amor a um humano!"

Era isso o que me preocupava. Não somos criaturas feitas para nos apaixonar pelos humanos, fomos feitos para servir ao Senhor. É o nosso foco. Para sempre.

Que caia por terra a minha parte teimosa que insiste que eu devo agir quanto a isso. Afinal, isso não é nada, certo? Eu não me apaixonei por um mortal, certo? Certo. Certo. Isso está certíssimo. Minhas teorias são absolutamente plausíveis.

Ou será que não?

- Não devia gastar o seu dia olhando para o nada. - Era Gabriel, um amigo. Dei uma risadinha irônica.

- Eu não devia gastar o meu tempo com muitas coisas, Gabriel. - Ele me olhou inquisitivamente. Não percebi o motivo da surpresa, inicialmente, mas quando me caiu a ficha, meu rosto ardeu e percebi que eu precisava reparar imediatamente o que havia dito. - Não estou falando do trabalho ao Mestre, é claro. Eu daria minhas asas e tudo o que tenho ao Mestre para servi-lo pelo resto da minha vida. - Eu não estava mentindo. Primeiro porque não podia, o Mestre saberia. Depois porque... bem, porque eu daria tudo o que tenho para servir ao Mestre. Eu o amava, de verdade. - Estou falando de ver certas pessoas. Ou melhor, certos anjos. Todos temos nossas aversões, sim?

- Creio que sim. - Gabriel pareceu satisfeito com a minha resposta. - Mas Miguel não odeia você.

- Duvido muito. Enfim, dá licença. Você mesmo disse que eu não devo gastar meu tempo olhando para o nada. Tenho trabalho a fazer.

- Vá.

Eu saí da sala com a mente cheia. O ser humano por quem eu tinha me apaixonado era, francamente, uma criatura absolutamente linda. Cabelos castanhos e olhos azuis como o céu, acho que eu nunca vira nada igual, nem entre os anjos. Ele não tinha asas, mas pela beleza e inocência podia muito bem ser uma criatura celestial.

- Muito trabalho aí, colega? - Uriel, um amigo, perguntou, passando com uma pilha de pergaminhos nas mãos.

Era ironia, óbvio. Eu não estava fazendo nada. Mas pretendia ir falar com o Mestre. Era uma necessidade quase urgente.

- Estou com mais trabalho que imagina. - Respondi, bufando. Acho que no nervoso que estava na hora, eu tinha até esquecido de voar. Então bati as asas até os portões da Sala do Trono. Como falar isso, como falar isso?

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