Ele permaneceu de olhos fechados, estirado no colchão fino através do qual podia sentir plenamente nas costas a friagem da cama estreita de alvenaria, com um dos braços sob a cabeça e a outra mão sobre o abdome; ficou por horas estático; ao abrir as portinholas de suas janelas da alma, seus olhos cor-de-amazonitas, fitou o teto onde haviam algumas pequenas rachaduras, manchas nojentas de mofo e nos cantos das paredes eram expostos o trabalho minucioso das aranhas pequenas, as achava repulsivas.
Pensa que enfim como uma árvore anciã poderia fixar suas raízes, cultivar uma barba emaranhada até que esta lhe alcançasse os pés e ali poderia morrer. Mas em que tipo de clausura não se sustentava os vícios mundanos? Estaria ali dentro realmente imune a todos os fatores que o levaram para seu "recolhimento"? Definitivamente era a mesma podridão que se instalava dos dois lados da muralha, com todos os seus atrativos e recursos, tratando-se apenas da forma como as técnicas seriam empregadas.
No entanto acredita que ali poderia ficar deitado sobre o cimento frio, embebido pelo silêncio, o sacro silêncio, até expirar; nada o retinha do lado de fora, beneficiários de sua liberdade inexistiam.
Mas haveriam aqueles que teriam o destino alterado com sua ausência. Uma vez que estivesse fora das ruas, não haveria uma cota de sangue a ser tomada ou um cadáver a ser removido de alguma lixeira contendo nas entranhas os projéteis disparados por sua arma. Então sua própria redenção se encontrava grades à dentro, naquela sacra clausura onde não haveria o contágio dos demônios sedutores da degeneração.
Ele então sorri para si. Convenhamos, na realidade aqueles pensamentos nada mais eram que mais um dos subterfúgios que o possibilitavam por instantes se desvencilhar de sua feiura interna e de sua própria imundície. Ele, Pierre Lachat, que aos vinte e cinco anos já havia arrebatado uma multidão de seguidores alucinados; aclamado dentre os condenados, os filhos da repulsa alheia que copulavam com o diabo pelos cantos das ruas enquanto libertavam dos pulmões a fumaça que desembocava do fumo entre seus dedos ou quando sorviam uma fileira branca pelas narinas, uma após outra. E depois vinham os delírios, o êxtase proporcionado pelo toque ardente do diabo em suas várias formas. Ele, purificar-se?
Ele agora ria sozinho no escuro, na medida em que pensava em sua própria condição de condenado seus risos ficavam mais altos até serem ouvidos por seus vizinhos por toda extensão do longo corredor. Ria ao imaginar-se com grandes asas alvas pairando sobre seus companheiros e estes a lançar aos seus pés as oferendas embrulhadas em papel pardo que ele abriria com as mãos de palmas perfuradas, perfuradas por projéteis. E depois... a luz; de dentro da luz viria uma voz grave dizendo-lhe que estava enfim absolvido. Seus risos se amainam até cessarem de todo. Ele dá um suspiro profundo... Um assassino, que ainda verde contraiu matrimônio com os tóxicos, foi violento com as prostitutas, exímio negociador na compra e venda de armas de fogo e entorpecentes, um dos melhores atiradores que aquela província já acalentou em seu seio, enfim um demônio. Poderia o próprio demônio ser absolvido de suas transgressões?
Ele cerra os olhos e permanece em silêncio, os ruídos vindos da rua iam se tornando distantes, os sentidos iam adormecendo gradualmente, como se ele fosse aos poucos tragado por uma garganta tão negra e profunda que dentro desta era impossível sentir o transcorrer do tempo. Vai sendo aos poucos engolido por um turbilhão de água negra tão fria que lhe entrava pelos ouvidos, pelas narinas e pela boca, até ensurdecê-lo, sufocá-lo e emudecê-lo, despejando-o no mar de suas origens. Ele adormece.
Está na Sancerre de sua idade áurea, exatamente como há sete anos a deixara, andando novamente por aquelas vias; as pessoas olhavam-no de soslaio, os rostos antes roliços e viçosos daquelas senhoras já estavam vincados pelo tempo, enrijecidos e o seu era impassível. No fim da rua, a rua de sua infância, vinha ela, de caminhar etéreo como um espectro envolto em vestido branco esvoaçante assim como o véu de tule que lhe caía sobre o rosto e os cabelos castanhos ondulados que despencavam ombros à baixo. Lachat corre para ela. Eloise estava intocada pela passagem dos anos; ele a alcança e a envolve com braços eufóricos e saudosos violentamente. E então aquele vestido alvo tão puro se tinge de carmesim na altura do monte de vênus. A havia ferido? Ela estava maculada! Sua Eloise! E então todas aquelas pessoas semimortas que vagavam como espectros lhe dirigem impropérios, seguram pedras e o ameaçam. Um homem corpulento se aproxima tendo nas mãos um balde de lama e joga com ódio brotando dos olhos todo o conteúdo sobre ele e Eloise deixando-os imundos. Aquele homem o fuzilava com olhos gélidos de um demônio.
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A Sacerdotisa e o Deus da Guerra
General FictionUma autopsia na natureza humana, tendo como leito uma província de delírio, hirta, de um cinzento mortiço e o odor pútrido de um cadáver em decomposição, onde o cerne dos homens apresenta-se na plenitude de suas vísceras vermelhas, enlouquecem e san...