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[freda]

            Sim, talvez eu seja um rato de biblioteca. Talvez eu passe demasiado tempo fechada entre quatro paredes a ler um dos melhores livros alguma vez escritos. Talvez eu seja demasiado deprimente, talvez eu goste de ser assim. E no entanto, no meio de tantos talvez e de tantas incertezas, a única coisa certa e invencível a mim mesma é o facto de haver alguém neste preciso momento a observar-me, a escutar cada som que eu crio, a analisar cada gesto que eu faço e a recordar cada traço do meu corpo. E disso eu tenho a certeza, mesmo que seja demasiado cobarde para olhar em meu redor e terminar com o suspense. Existem pessoas à minha volta, mais do que da última vez que aqui estive, algumas sós, outras acompanhadas, a maioria embrenhada nos seus livros e cadernos. Uma sensação terrível instala-se no meu peito e sinto que o teto pode desabar sobre mim a qualquer instante, mas depois, oh!, é tudo uma partida da minha mente. Não existe nenhum admirador secreto, aquele pêssego foi uma coincidência e os únicos mistérios acontecem somente nos livros. E sim, eu sou um rato de biblioteca, e passo demasiado tempo fechada entre quatro paredes, daí as alucinações. Um sorriso curva os meus lábios quando percebo tudo isto, mas ainda assim o meu cérebro não para de divagar, e tudo se torna tão confuso, não consigo parar, não consigo esquecer, é o caos. Por fim, então, obrigo-me a respirar fundo e a ler.

            As páginas deste exemplar encontram-se manchadas e amarelas, nalgumas até foram feitos rabiscos a caneta e notas a lápis, mas por mais curiosa que eu seja, obrigo-me sempre a ignorar essas impurezas e a concentrar-me unicamente nas palavras impressas em verso. Algumas estão sublinhadas, o que me faz refletir acerca do seu significado, mas aquelas que não estão, essas, são as que mais me dão que pensar. Reflito acerca do porquê da pessoa que marcou o livro não as ter escolhido, e depois tento anotá-las mentalmente para mais tarde as guardar num sítio onde ganhem algum protagonismo. A maioria das pessoas pode achar-me louca, mas eu gosto de pensar que estou a salvar uma pequena parte da humanidade literária. Não é que faça alguma diferença, pois no fim de contas eu mesma vou acabar por excluir as palavras que já foram sublinhadas, mas no fundo, uma paz incalculável instala-se na minha alma e um enorme orgulho espalha-se sobre mim. Nunca contei a ninguém que o fazia, porém.

            Hoje, especialmente, não me consigo concentrar. Está demasiado calor, as janelas estão fechadas e eu caí no erro de vestir uma camisola de lã. Sinto o suor na minha pele, o que me incomoda, e as minhas mãos estão peganhentas ao ponto de amolecerem o livro. Digo-me a mim mesma que nada disso importa, que está tudo bem, mas eu sei que não está. Não consigo simplesmente fingir que estou num sítio seguro, onde ninguém notará o meu nervosismo, pois no fundo, eu sei que isso é a mais errada verdade. Sei que andará por aí alguém que já reparou em mim, que sabe mais para lá do que eu tento demonstrar, e isso impede-me de agir naturalmente, como num dia normal. Tenho sempre a estúpida sensação de estar a ser perseguida por um lunático qualquer que me quer fazer mal, e isso apavora-me, apesar de no fundo sentir um desejo perverso de compatibilidade entre mim e essa pessoa misteriosa. Essa pessoa foi o mais parecido a um amor correspondido que eu já tive nos últimos tempos, e isso deixa-me a pensar que, talvez, só talvez, existam mesmo almas gémeas, cujas similaridades vão mais além de uma identidade.

            Oiço passos atrás de mim. O meu coração rapidamente começa a acelerar. É como se eu fosse a personagem principal de um filme que a qualquer momento verá a sua vida dar uma volta de cento e oitenta graus. As palavras do Folhas de Erva saltitam pelos meus olhos, mas eu já nem me esforço para as recordar no meu cérebro ou entender o verdadeiro significado das suas metáforas. Uma mosca voa à minha volta e eu franzo o nariz, mas depois, como se me quisesse apunhalar, o meu telemóvel toca e eu quase salto da cadeira com o susto. Ao olhar à minha volta, percebo que a maioria das pessoas me fita como se eu fosse um ser de outro mundo. Forço um sorriso amarelo e apresso-me a atender a chamada.

Peach » michael cliffordOnde histórias criam vida. Descubra agora