3. Edgar

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Na primeira vez que Edgar pôs os olhos em cima de Heloísa nada aconteceu. Exatamente isso: nada. Ninguém respirou. Ninguém piscou. A gravidade esqueceu o que era massa vezes aceleração e até o spin dos átomos deu um tempinho na rotação. O mundo. Ou, pelo menos, o mundo de Edgar deixou de funcionar por dez segundos.

Nesses dez segundos, como alguém que está à beira da morte, ele viu sua vida passar junto daquela moça de cabelo curtinho. Não o passado. O futuro que ele queria construir com ela. O casamento. A casa. A família. Do primeiro beijo às Bodas de Ouro. E ele soube que nada valeria mais do que conquistá-la. Difícil seria conquistá-la.

Edgar era um estudante de Medicina que veio de uma escola pública. Sua conquista foi tão grande que saiu até no jornal. Ele estudou dia e noite, revisando os conteúdos pela madrugada. Passava os domingos estudando Física e Matemática, as matérias que tinha mais dificuldade. Estudava nem que fosse trancado no banheiro para fugir da gritaria.

Não que sua família fosse paupérrima ou desequilibrada. Simplesmente, com três irmãos além dele para criar com salários de costureiros, os pais não tinham condição de arcar com esse tipo de despesa. E, desde cedo, Edgar tomou consciência que seus sonhos deveriam ser do tamanho do seu esforço.

Heloísa era o oposto. Era amiga de infância de Adriano. Adriano, seu melhor amigo da faculdade de Medicina, pertencia a uma das famílias mais ricas da cidade. Seu pai, Demóstenes Leal, era um advogado de sucesso. A casa de Adriano deixava Edgar tonto. Não imaginava que pessoas pudessem ter tantas regalias. Até mordomo eles tinham. Colecionavam carros. Carros. Sua família não tinha um carro ainda, mas eles tinham pelo menos dois para cada membro.

Enquanto Edgar assustava-se com tudo naquela propriedade, Heloísa parecia muito à vontade. Ela e a mãe de Adriano conversavam com cumplicidade tomando chá com biscoitos. Edgar achava que aquilo só acontecia em filmes, mas a cena se repetia bem diante do seu nariz. A moça falava baixo e dava mordidinhas minúsculas nos biscoitos amanteigados.

Ele reparou nos dedos finos e delicados de unhas bem cuidadas, tão diferentes das suas de pele grossa de tanto ajudar na lida da casa. Reparou no corte do cabelo na altura das orelhas. Era um corte tão bem feito que ele imaginava que cada fio ficaria no lugar mesmo no meio de um vendaval. E reparou na sandália. Aquela sandália que ela usava, com pedrinhas brilhantes, era de uma grife exclusiva. Aquela sandália deveria ter custado mais que o ordenado de sua mãe. Lembrou-se que os sonhos deveriam ser do tamanho do esforço. Aquele sonho de menina não cabia na força dos seus braços de menino batalhador.

Subiu as escadas sem vontade, com a cabeça baixa e o mundo nos ombros. Adriano, que o acompanhara até a cozinha para um lanche, estranhou a demora. Ainda tinham muito para estudar, Edgar não dispensava estudo. Era o melhor aluno de sua turma. Voltando pelo mesmo caminho. Entendeu na hora o que havia acontecido e com um sorriso no rosto insistiu em apresentar o amigo para Heloísa. Edgar preferia morrer a enfrentar o olhar bem maquiado daquela menina linda com sua calça jeans sem marca, mas Adriano simplesmente o puxava escada abaixo. Logo estava de frente para ela.

Edgar parecia ser feito da mesma manteiga dos biscoitos na mesinha de chá, pois sentia que derretia diante do sorriso contido Heloísa. Ela não precisou fazer nenhuma cara feia, ou torcer o nariz, ou desprezá-lo com o olhar. Estar diante um do outro foi o suficiente para que ele entendesse seu lugar. Heloísa pertencia a outro mundo paralelo ao seu. Um mundo que, provavelmente, ele passaria a vida inteira tentando integrar sem sucesso. E, mesmo assim, não conseguiria ser uma daquelas pessoas. Não conseguiria ser como Adriano na sua gentileza natural de gestos.

Voltaram para o quarto, mas Edgar não era mais o mesmo. Perdia-se fácil em pensamentos e quando Adriano fez uma pergunta estúpida de anatomia e ele não soube responder, ambos compreenderam que a tarde de estudo estava perdida. Edgar desabafou suas angústias. Tinha tanto orgulho da sua família simples, porém, nunca se sentira tão insignificante quanto olhando para os pés daquela menina. A sandália de grife parecia esmagá-lo.

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