PARTE I. CAPÍTULO 1

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Eliot Lewis encerrou a breve visita à sua tia.Mais rapidamente do que as convenções aceitariam, encontrou a porta de saída da ala D do hospital psiquiátrico.Estalava as juntas dos dedos,enquanto a enfermeira tentava encontrar a chave certa no molho enferrujado. Ao virar a cabeça para se certificar de que sua tia já havia sido encaminhada de volta a seu quarto, podendo assim sair rapidamente, quase que se moldando à brecha aberta na porta- tão logo a enfermeira tivesse testado todas as vinte chaves ,descobrindo que a primeira lhe teria servido se tivesse realmente se empenhado- viu a loirinha risonha do outro lado do corredor.
          Sentada no chão da ala D, sob a janela de malha de ferro sextavado, que combinava muito bem com as chaves, molduras de madeira verde àgua , com florzinhas pintadas de branco de muito mal grado,Laura gargalhava sem qualquer motivo aparente,agarrando seus próprios pés descalços.
Lewis desistiu de ser espectador da falta de habilidade da enfermeira com qualquer coisa que não fosse mentalmente enferma e caminhou até Laura. Tocou-lhe os cabelos.O toque o remeteu a uma viagem que fizera na infância, quando foi obrigado por seu pai a acariciar um bicho-da-seda .
-Que alegre!-disse ele. Sua habilidade social somente comparada à habilidade da enfermeira ao lidar com chaves, portas e fechaduras.
-Não é alegria, meus pés estão caindo!- explicou Laura, gargalhando.
Lewis olhou à sua volta,torcendo  para que ninguém mais tivesse ouvido. Então, sem mais nenhuma testemunha, ele poderia "desouvir” aquilo , fingir que nada ocorrera e conseguir fazer o caminho de volta ao seu mundo, onde ainda existia algum nexo. Mas, por via das dúvidas, agachou-se e ajudou a moça a segurar os pés. Quem saberia de qual problema ortopédico ela sofria?
Laura o olhava de soslaio com seus olhos verde-oliva.Havia neles uma sabedoria algoz e um conhecimento profundo de tudo e todos, que pareciam rir para Lewis , gozando de cada milissegundo do triunfo de terem conseguido levá-la ao estado em que se encontrava. Laura inclinou-se e lambeu os lábios de Lewis, fazendo-o cair sentado. Ela ergueu-se e ofereceu-lhe a mão para um cumprimento breve e agitado.
-Laura. Prazer. É muito monótona esta ala de birutas de cérebros repicados irreparáveis-disse ela, gesticulando como um monitor apresentando um museu.
Ele se apresentou também, mas disse seu nome e não conseguiu proferir uma outra sílaba sequer.
-Não me lembro de ter vindo para cá-disse ela.- Eu lecionava piano, depois me voluntariei em um abrigo para crianças e jovens, e ...de repente, estava aqui, recebendo o diagnóstico de esquizofrênica. Minha mãe enfartou quando vim parar neste lugar. Foi como se ela tivesse confirmado que nasci ...–Laura abriu as aspas no ar e disse lentamente-... es-tra-ga-da, como ela sempre acreditou - e fechou-as, ficando por alguns segundos com dedos dobrados no ar, olhando para o branco da parede.-Ninguém supera Schubert.
"Um Estranho no Ninho" deixara em Lewis uma impressão romântica da loucura, quase como algo a ser transformado em objetivo. Enlouquecer.Enlouquecer deveria estar na lista dos top 10 a se fazer antes de morrer. Ele continuou em silêncio. E o mais incompreensível era que seu silêncio não parecia incomodar Laura, o que o fez querer ficar ali o resto de seus dias. Lewis era um jovem homem de 23 anos, de um caminhar muito altivo, sempre com o queixo acima da linha do horizonte, e com certa aversão a conversas, reuniões e eventos. Gente.
-Os violinos fritam correntes elétricas-disse ela,com paixão,a mão em garra-,ao roçarem os arcos nas cordas na Polka Tritsch-Tratsch de Strauss. Violão, você toca? Lá menor, acorde simples mas harmonioso. Lá menor sempre me faz chorar.
Laura calou-se e encarou a figura desproporcionalmente alta que olhava para ela sobre os ombros de Lewis. Não era humana nem monstruosa. Uma figura de pele acinzentada, de cabeça calva e ligeiramente ovalada , e olhos dóceis de tamanho de ovos de galinha, com pupilas de gato. Tinha asas de algo que as pessoas conhecem como anjos. A figura fez um sinal com o indicador sobre a boca para que Laura ficasse em silêncio. Ao som da primeira palavra de sua protegida, a figura deu lentamente de ombros, num gesto de amável complacência.
- Não-continuou ela-, na realidade minha mãe enfartou de consciência pesada. Ela deve ter achado que sua forma deturpada de me amar me trouxe para cá,mas não foi. O mundo me trouxe para cá, sabe? Você me trouxe para cá. Todos vocês. Vocês e suas certezas.Vocês e seus hábitos tão arraigados.Sua crueldade e egos frágeis disfarçados de gentileza e humanidade. Os livros que vocês escreveram como verdades absolutas. Os andaimes frouxos que vocês construíram para caminharmos. Vocês.Tudo isso. Todo este espetáculo sem platéia.
           A figura alta e angélica foi-se afastando, caminhado suavemente de costas, com os olhos nos olhos de Laura, até seu corpo acinzentado se misturar ao cinza do metal da porta da ala D. Ela nunca mais apareceria para Laura....

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