Sonho de Uma Manhã de Inverno

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Algumas horas incontáveis haviam se passado desde que o mundo se resumira à algumas dezenas de páginas amareladas e envelhecidas. A nova realidade não era exclusivamente devido ao clássico centenário que pousava, naquele momento, sob as mãos sensíveis e os olhos apertados de lágrimas, mas também a uma certa mudança repentina e indescritível que transportara os planos para o futuro de uma grande e movimentada metrópole, para uma estrada de pedras e terra que dava, infelizmente, não em um paraíso natural, mas em um considerável fim de mundo. No dia da chegada, correntes líquidas eram despejadas pelo céu acinzentado e inundavam o solo arenoso deixando-o escorregadio e inalcançável. Razão promíscua para manter-se abrigada debaixo de alguns cobertores trazidos de casa e acompanhada da própria solidão resultante da distância.

            Octogésima sétima página. Titânia prendeu rosas almiscaradas na cabeça lisa e macia do burro pelo qual se apaixonara. *

Mas ora, isso não importava. O fim daquela história já habitava sua memória como a de alguém que já a houvesse lido dezenas de vezes. Voltou-se para a janela de madeira entreaberta, analisou o Sol que preguiçoso ameaçava nascer mais uma vez. Vislumbrou ao longe um vulto branco no vermelho que tomava o céu, movimentando-se em um labirinto invisível, ao longe, veloz e derradeiro. Voltou para a leitura. Alguns segundos se passaram antes que o tecido perolado da cortina se movimentasse e por ele, entrasse a pequena mancha nevoada.

            A grande Mariposa Luna pousara na lateral do velho livro. Sua longa calda rósea se estendia até a extremidade da lombada oposta e cintilava com a aurora que acontecia do lado de fora. Era a coisa mais sutil e frágil coisa que os olhos humanos poderiam imaginar ver. Assustada, chacoalhou as asas e saiu pelo mesmo local por onde entrara, após a agitação provocada onde se apoiava.

            _Você é bem bonitinha, mas só para deixar claro, não gosto muito de... Coisas como você.

            Ela se aconchegou um pouco mais e voltou à linha onde havia parado. Alguns minutos, talvez segundos – não havia ninguém cronometrando – se passaram comuns e simples. A seda se movimentou mais uma vez, enroscou-se e torceu-se até que dentre as tranças de ventania surgiu mais uma vez as asas delicadas da Mariposa.  Ela voou destemida pela atmosfera do cômodo, deixou traços cor-de-rosa no forro amarelado e bateu rigidamente as asas nos cabelos negros que se encolhiam. Duas palmas a afastaram enojadas e voltaram a passar páginas. O vulto de luz saiu mais uma vez pela abertura.

            A jovem dirigiu-se à janela e uniu suas duas partes, trancando-a. O local ficara escuro, mas valeria a pena se levando em conta que não seria mais interrompida.

            Não, não havia ninguém cronometrando. Mas foram cinco minutos, sim, cinco minutos redondinhos. Um vento ágil e eficiente do nada escancarou a fenestra, lançando a tranca à metros de distância e entortando algumas tábuas de madeira. A cortina se agitou, se contorceu, se amarrotou em diversas áreas. Alguns porta-retratos foram lançados ao chão, inacreditavelmente não sendo quebrados em lugar algum. Os olhos azuis e assustados ficaram embasados pela intensidade da brisa, o livro foi jogado ao chão. A ventania cessou.

            _Como é que...

            A Mariposa estava apoiada mais uma vez na extremidade da antiga obra, mas as páginas haviam se misturado. Não se tratava das última palavras que tinham sido lidas. Uma mão se aproximou, as asas branca-roseadas se movimentaram e deixaram a sala. A jovem de cabelos negros analisou a primeira frase da página oitenta-e-quatro, uma fala de Lisandro: Ele vai na minha frente, e continua me desafiando a segui-lo. *

            Ela pensou por algum tempo. Não, claro que não. Deveria estar ficando louca. Leu a sentença mais uma vez. Impossível, isso não existe.

            A Mariposa entrou mais uma vez e voou logo à frente de seus olhos. Próxima demais. Agitada demais. Foi em direção à janela, planou por alguns segundos, e saiu.

            A moça de cabelos negros marcou a página com o dedo indicador, levantou-se e se dirigiu à fresta da janela. As asas de neve estavam lá, flutuando sobre o nada. E a janela era baixa o suficiente para ser ultrapassada com um pulo.

            A terra há muito se tornara lama. Ainda mais quando se encontrava tão longe da casa. Seus pés estavam além de gelados, cobertos por um barro extremamente líquido. Usava a mão direita para afastar alguns galhos que se colocavam em seu caminho, estes que a cada toque soltavam linhas de água cristalina. Abriu novamente o livro onde marcara. Ele vai na minha frente, e continua me desafiando a segui-lo. Quando chego ao ponto de onde ele me chamou, ele não está mais lá. *

            Vislumbrou o movimento branquíssimo mais uma vez. Através de um tronco grosso de uma árvore enorme, ele brilhava volumoso. Ela se dirigiu até ele. Ele desapareceu e reapareceu no mesmo momento, à alguns metros de distância, em frente à uma extensa e alta pedra. Se tornou nada, e tornou-se algo novamente entre as folhas de um baixo arvoredo. Ela se aproximou, e o vulto da Mariposa Luna invadiu seus olhos e os tomou em um abraço luminoso e ao toque, imperceptível. Ele desapareceu, mas à sua frente não havia coisa alguma como antes.

            O pequeno arvoredo se tonalizava agora prateado e suas pequenas e esguias folhas cintilavam como pingentes de gelo. O chão estava verde como esmeralda e macio como o pelo de uma lebre. Já era manhã, uma manhã clara e morna. À sua frente o muro de tijolos à vista não mais existia, muito menos o gigante pedregulho ou os galhos que lhe cortavam a face. Um estreito lago de águas turquesa tomara o lugar logo à sua frente e um campo interminável estendia ao panorama de seus olhos.

            Uma pequena cabana de madeira e palha em tons de marfim se desenhava à alguns metros de sua posição, sobre uma pequena ponte vernizada por onde pedras de variadas cores rolavam sem cessar. Por mais estranho que pudesse parecer, o céu não se apresentava em azul, mas sim em violeta e prata, criando centenas de riscos cintilantes que se uniam em círculos cerrados e contorcidos. O ar estava perfumado, chegando a lembrar o aroma das ameixas. E eis que do casebre surge uma figura pequena e radiante. Uma mulher em branco de longos cabelos platinados enroscados em tranças. Lábios vermelhos como sangue e olhos vazios. Desocupados. Também brancos como algodão. A calda de sua veste se abria em duas partes que se arrastavam róseas pelas gramíneas orvalhadas. Lentamente, ela começou a se aproximar. Não sabia-se para onde olhava, pois íris não havia em seus globos. E a cada passo algo se transformou. Os bambolês lilases dançaram e se bateram como asas, deixando o céu cinza como a pré-noite. O solo tremeu e reluziu, se transformou em cacos e aos poucos se degradou. A cabana, com um vento inanimado e repentino, reduziu-se a uma penugem plácida levemente amarelada, que se espalhou pelo campo. E ela continuava a andar, passos calculados e visão incerta. Todo o ambiente se empalideceu e, mesmo que aquilo fosse algo completamente inexplicável, de alguma maneira fazia sentido para a moça de cabelos negros. A transformação lhe doía as têmporas, pois ela sabia que era real, de alguma forma. Fechou os olhos para amenizar o desconforto. Latejava. Pulsava. Poderia sentir seus batimentos apenas se colocasse as palmas na testa. Abriu-os, apenas a dama em branco lhe fitava na não existência. Fechou-os. Abriu-os. Finalmente havia acabado.

            Já fazia uns bons meses que não tinha um daqueles sonhos. Eles eram muito comuns em sua infância, eram mágicos e fumegantes. Com o tempo se tornaram mais raros, sendo apenas sufocantes deslembranças. Alimentavam sua crença em coisas impossíveis. Médicos diziam ser coisa de criança, idade onde tudo é razão para criar e criar, mais e mais. Mas quando os anos se passaram e eles começaram a ter um efeito desnecessário, ela fora obrigada a se deslocar para um lugar onde “ficaria em paz para liberar seus medos”. Estava lá neste exato momento. Pensando no que eles imaginariam quando contasse que se deparara mais uma vez com as cenas que por tanto tempo a distraíram. Então lembrou-se do livro em sua mão, seu indicador ainda marcava uma página, mas não era a que se lembrava.

            Página cento e onze. Uma pequena, delicada e destruída pena amarelada amassada contra uma fala de Hipólita: Neste caso deve ser a sua imaginação, não a deles. *

*Trechos retirados do livro Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare.

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⏰ Última atualização: Dec 14, 2013 ⏰

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