Prólogo - Acordem meus lobos!

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"Obs: Todos os capítulos começam com relatos da colonização de Herégion, escritos pelos soldados que sobreviveram às guerras contra os senhores das trevas. Esses eventos ocorreram 2 séculos antes da história real narrada. Por isso dividi com os 3 pontinhos.  • • • "



"Apesar do silêncio, o canto foi trazido pelos ventos que agitavam as copas das árvores daquela serena madrugada. Olhava para meus companheiros de batalha e estava desconfiando que não era qualquer um que poderia ouvir os timbres que penetrava em meu subconsciente. Algo estava muito errado e só poderia ser o sinal de que alguma coisa foi perturbado. Feche os olhos e ouçam o zunido além do inquietante vazio que o preenche, não conseguem perceber as vozes conversando com você? Elas não aclamam e nem imploram, não sinto dor ou desespero, só um canto que eriça os pelos do meu corpo, como um despertar, uma libertação do próprio exílio." – Relato de Kátaros, um dos cinco guerreiros que iniciaram a resistência contra a colonização de Herégion.

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As águas sendo remexidas quebravam o silêncio da noite. Um pequeno e velho barco de madeira desembocava de uma das afluentes do imponente Rio Dragão, singrando ao mar aberto. Sobre suas decadentes taboas, encontrava-se de pé um corpulento sujeito de vestes escuras e surradas. Com um longo remo, fazia lentos movimentos na água guiando a embarcação pelas leves correntezas. Conforme se afastava da região fechada do rio e adentrava ao mar aberto, a mistura do ar quente com os ventos gélidos, formava uma neblina que cobria por completo o barco – fazendo parecer que o sujeito flutuava sobre as águas –, como uma alma solitária que parecia sumir entre a névoa conforme avançava para um horizonte vazio e sem terras. Sua postura lhe fazia parecer alheio e despreocupado com tudo ao seu redor. Naquela quietude, no ritmo da lenta remanda, vagava por águas misteriosas, que jazem em suas profundezas tesouros em formas de histórias e lendas que nunca deveriam ser ouvidas ou perturbadas. Ao longe, era possível ver a sombra do sujeito se movendo, tentando pegar algo de dentro do barco. Ao se levantar, ergueu com sua mão esquerda um velho lampião, que emanava uma tênue luz alaranjada, fazendo sua silhueta ficar ainda mais aparente. Depositando o objeto na proa, voltou a remar, seguindo o horizonte.

Em uma mudança brusca de temperatura, os ventos trocaram de direção de forma não natural, estavam conturbados, mas em instantes voltavam a serenar. Depois de tantas manipulações dos eventos da história de Herégion, tornou-se difícil dizer o que era natural e o que estava sendo controlado.

— Uivos... — Sussurrou o sujeito, com uma rouquidão em seu timbre voltando sua atenção a noroeste.

Com o silêncio que antecedeu o clarão de um raio, com sua voz forte como o trovão, entoou um canto que parecia ressoar pelas águas do mar:

Eu vou, eu vou para o mar,

Onde os sete mares se encontram

Vim convocar

Acordem, lobos, do fundo do mar

Ergam suas bandeiras

Vamos batalhar

Rompam as corretes e deixe-as tocar

Nosso último canto

O uivo do mar

Nessa noite vim convocar

Sigam minha voz

Meus guerreiros do mar

Eu vou, eu vou navegar

Onde as sereias cantam

Querendo asas para voar

Voem, voem, do fundo do mar

Almas acorrentadas se rompam

Vamos navegar...

Silêncio... A voz do estranho foi sumindo gradativamente em um eco profundo. Parado, com sua atenção fixa em um ponto que só ele poderia enxergar, manteve sua postura como se esperasse uma resposta da imensidão vazia. Passado um tempo facilmente indeterminado, os ventos começaram a ficar mais forte, as águas pareceram se incomodar com as suas palavras. Ao longe, emergindo das profundezas, um imenso navio, era possível ver sua silhueta. Quando o som das águas sessaram, vários uivos ecoaram da imensa nau, como lobos sedentos, não por comida, mas e sim por guerra e vingança. O homem começou a remar na direção contrária, voltando as afluentes do Rio Dragão.

— Sejam bem-vindos de volta, meus guerreiros.

Ao transpassar as névoas, a feição rude e marcante de seu rosto se tornou visível, mas não era possível ver seus olhos ocultos pelas sombras. Esboçava um leve sorriso com o canto de sua boca torta, quase totalmente encoberta por sua espessa barba negra e suja.

O Enigma de Shalkas - O Canto dos ExiladosOnde histórias criam vida. Descubra agora