Aí você pensa em fotos históricas, coisas importantes, grandes momentos da humanidade, personalidades históricas, não é? Pode ser, mas a história é feita da vida de pessoas comuns também, aqueles quase anônimos, como eu e muito provavelmente você. Salvo a probabilidade de você, leitor, ser uma figura histórica contemporânea como Neymar Jr., Roberto Jeferson, Anitta, etc.
Então, sem aviso, um clique de um fotógrafo registra sua presença nas páginas de um jornal e você se vê, ainda que num minúsculo recorte, como parte da história.
Tá, mas já chega dessa chatice, e além do mais, não estou aqui para falar de história, mas sim, para contar uma estória. É, já vou dizendo logo, não quero enganar o leitor, é uma estória que não aconteceu de verdade no mundo de vocês, mas verdadeira do lugar de onde venho. Uma estória sobre mudanças na história.
Quem sou eu? Aquele sujeito ali na foto, meio barrigudo, cabelinho escorrido-querendo-ficar-calvo, óculos de aros grossos, um produto da minha geração. Sou tão anônimo que nem dá pra ver minha cara direito. De onde vim? Bem, espere mais um pouco...
Então, eu estava em São Paulo passando uns dias na casa de uma tia avó. E ela havia me pedido para comprar batatas, tomates e mais alguns ingredientes para ela me preparar sua maravilhosa receita de nhoque. %Tia Du, era uma senhora de quase noventa anos, muito ativa, toda sequinha e que poderia passar por ter setenta anos. Planejávamos sua próxima viagem para a Bahia, onde eu morava. Sempre que eu podia, passava uma temporada em Cacha Pregos, uma pitoresca vila de pescadores quase perdida na Ilha de Itaparica, próximo a Salvador. Ele adorava ir lá me visitar.
Aí você pensa, ah, então você é de Cacha Pregos, um lugar mítico? Não, na verdade o lugar existe. Acho gozado quando as pessoas falam para mim que, algo que não podem achar está lá depois de Cacha Pregos. Aí eu respondo: Ah, sim, sei bem onde é. É um manguezal lindo e certamente um lugar bem diferente daquele onde Judas perdeu as botas.
Uma das coisas mais marcantes na %Tia Du era seu jeito de falar, decidido e que não deixava nenhuma margem para dúvidas. Acho que ela era, como eu, uma pessoa desajustada da sociedade.
No ano anterior, estávamos jantando e vendo uma novela chamada A Barba-Azul, da TV Tupi.
— Detesto essa novela. Olhe para isto. O que se mostra dessa Jô e Fábio é uma pouca vergonha. E essa chamada? No barco do destino a força de uma paixão... Detesto!
Acho que a palavra preferida dela era detesto. Dizia com tanto desgosto e propriedade que saia de sua boca como uma verdade legítima e inquestionável. E como ela detestava coisas. Fumaça de carros, barulho de construção de prédios, todas as telenovelas (mas assistia a todas assiduamente), o advento dos supermercados, etc.
— O que é aquilo, meu filho — ela me chamava assim, pois nunca se casou nem teve filhos — empurrar um carrinho de metal para levar as compras? E depois aquela fila para pagar? É o fim do mundo! Detesto essa invenção de supermercados. Bom mesmo é ir à feira. — e listava todas as vantagens que as feiras tinham sobre os supermercados.
Mas naquela noite, a que antecedeu a publicação de minha foto, o nhoque dela estava insosso, mas o que mais me admirou é que ela não disse a palavra detesto nenhuma vez durante toda minha estadia. Na ocasião, pensei que ela estivesse doente e que fosse morrer logo. Não era este o caso.
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A Feira e o Futuro da Ficção
Science FictionAcho que é a coisa mais maluca que já escrevi... Fiz especialmente para a antologia "Retratos Não Falados" organizada por Ric Brandes. Este conto se inspirou numa imagem do acervo do Estadão, que mostra pessoas comprando numa feira de rua, em São...