%Ladu, um nativo magro e alto, com dentes tortos, era quem bombeava água da cisterna para a caixa d'água de minha casa. Ele estava muito chateado dá última vez que estive na ilha. Ele frequentemente brigava com colegas em jogos de dominó e eu temia que isso pudesse acabar mal para ele, um dia desses. Acordei naquela manhã disposto a aconselhá-lo a este respeito, mas me surpreendi quando ele veio conversar comigo.
— Vê-rê-rê, seu douthô. Eu thô mutcho feliz.
— É mesmo, %Ladu? O que aconteceu?
— Ieu conheci uma minina, num sabe? E avô me acasar.
— Puxa, parabéns, %Ladu, isso é uma ótima notícia.
— Otra cosa, seu douthô, eu prometi pra ela que nunca mais vô jugá dominó.
— Mas %Ladu, você adora o jogo! Acha mesmo que vai conseguir cumprir a promessa?
— Tá aí uma cosa istranha, seu douthô. Eu sunhei, no dia anterior, que juguei dominó com Jisuis. Ele era tão bom, tinha um olhar tão bom, quieu não tive jeito de jogá cum ele prá valê não, sinhô. Eu deixei ele ganhá, num sabe? E ele ganhou e deu um sorriso lindo. Aí, eu senti a maió felicidade. E pensei, é mutcho bom quando os outros ganham e mutcho ruim quando a gente perde. Então decidi que nunca mais queria jugar nada na vida. Quando ela me pediu isso, purque eu brigava sempre, foi fácil di prometê. E já faz mais de mês que num jogo, e nem sinto nenhuma falta não, Vê-rê-rê!
Ali eu tomava banho de mar, pescava siris utilizando pelancas, pedras e jererês, pescava peixinhos como Cabeçudos, Carapebas, Carapicuns e ocasionalmente alguns Vermelhos, além do famoso peixe Prego, que deu origem ao nome do local, muitos anos no passado. O fato é que na maré baixa, formavam-se piscinas rasas de água do mar, e ali ficavam cardumes de peixe prego fáceis de serem pescados até com as mãos. Os locais favavam um dialeto difícil de entender para quem tinha o ouvido destreinado. Falava-se otcho, biscotcho, vê-rê-rê, tomá uma, etc. Então o equivalente de pegar/catar, era cachar, ou catchar. Então diziam os velhos pescadores: vamos àquele local chachá pregos?
Cacha Pregos tinha muitas figuras inusitadas, como o velho pescador cego e aleijado conhecido como Seu %Alírio. Ele foi um dos que resolveu começar com uma prática de pesca mais eficaz, mas arriscada: utilização de bombas. Ao invés de se dar ao trabalho de arrastar redes, ou pescar com tarrafa, ou linha e anzol, os pescadores jogavam bombas na água que matavam cardumes inteiros e depois recolhiam os peixes que emergiam mortos à superfície. Seu Alírio deu o azar de uma bomba explodir em suas mãos. Ele perdeu boa parte dos dois braços, a visão e boa parte da audição. Mas ainda assim, era um senhor negro, de barba branca curta, quase careca e andava assobiando pelas ruas (melodias muito bem afinadas) com seu chapéu de palha que as mulheres da região teciam.
Seu %Alírio sempre vinha na minha casa e eu o recebia com prazer para escutar os causos. Retirava o chapéu com os cotos de braço, colocava embaixo do sovaco e se assentava numa das cadeiras de madeira e tecido estampados que montava na frente de casa. Dona Lourdes fazia café e eu trazia biscoitos de Salvador que ele gostava e também uma penca de crianças, netos e netas de dona Lourdes que frequentavam minha casa e os quintais, correndo atrás de gatos e galinhas. Toda criançada se reunia para escutar os casos do velho pescador. Ele conhecia o nome de cada uma das crianças pela voz, e contava causos que as deixavam de cabelo em pé. Eu ficava na dúvida se tinham mais medo da aparência dele ou das estórias que contava. Pessoas como ele, tendo a chance, seriam ótimos escritores. Era engraçado que ele, mesmo tendo ficado aleijado por causa da bomba, advogava até os dias de hoje sobre as vantagens do método de pesca sobre os métodos tradicionais.
Eu acho que era necessário falar um pouco sobre de Cacha Pregos para chegar ao ponto de explicar a respeito do lugar de onde vim.
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A Feira e o Futuro da Ficção
Science FictionAcho que é a coisa mais maluca que já escrevi... Fiz especialmente para a antologia "Retratos Não Falados" organizada por Ric Brandes. Este conto se inspirou numa imagem do acervo do Estadão, que mostra pessoas comprando numa feira de rua, em São...