Era janeiro. Chuva lá fora, clima instável, mas quase sempre molhado. A bagunça era visível. A quitinete estava totalmente desorganizada. Havia roupas sujas por todo o lado, em cima do sofá de cor marrom tinha uma pilha de livros e uma bolsa de mulher. Na pequena mesa que ficava entre a sala e a cozinha estavam expostos pratos sujos de comida e algumas travessas com restos servidos. Na pia, alguns copos, panelas e talheres esperavam para serem lavados. As cortinas da casa estavam fechadas e as janelas lacradas. Mais adiante, no único quarto, a situação não era diferente. Em cima da cama, que tinham lençóis encardidos, grossas cobertas estavam reviradas e uma toalha molhada repousava sobre elas. O banheiro, ladeado do cômodo de dormir, encontrava-se totalmente molhado e o cheiro que vinha dele não era dos melhores.
Na poltrona, oposta ao sofá, estava Gilson, um homem de seus trinta e cinco anos, franzino e desacreditado, vivia uma infecção respiratória que deixava seu corpo totalmente inapto para qualquer atividade. Sentia-se cansado e com dores por todos os membros. Não precisava olhar demoradamente para seu rosto para ver o desânimo que pousava sobre ele. Os olhos vermelhos, inchados, lacrimejavam sem parar. O cabelo, de um tom loiro escuro, estava revolto e sujo. Vestia pijamas listrados e, por cima deles, um grosso roupão azul descorado e desgastado. O conjunto oferecia uma visão lamentável.
Gilson estava em casa há cerca de quatro dias, sem se comunicar com ninguém. Não atendia ao telefone fixo nem tampouco o celular. Não queria conversa com qualquer pessoa que fosse. Além da infecção, uma crise depressiva tomava conta de sua estabilidade emocional. Estava totalmente vulnerável.
Seu pensamento estava voltado para uma jovem mulher, somente para ela. Envolvera-se com ela no meio do ano passado. E desde então não tivera mais paz. Dissera chamar-se Molly. Achara estranho esse nome, visto que era incomum. Mas simplesmente não era seu verdadeiro nome. Descobrira isso cerca de seis meses depois. Ela tinha menos de dezenove anos e tudo nela era mentira. Dizia morar sozinha nos Jardins, que não tinha pais vivos e vivia aos cuidados de uma velha empregada da família assim que seus pais morreram. Descobrira, no entanto, que era uma garota de programa de uma famosa casa da cidade e que estava a busca de alguém para lhe financiar a boa vida. Enganou-se com ele, achando que era milionário.
Em uma noite fria do mês de maio, um desses dias em que não se pode determinar em qual estação do ano se está, Gilson fora a casa do amigo Sérgio que era um dos filhos do dono da rede de frigoríficos mais famosa da capital mineira, onde ele trabalhava.
- E aí, cara, vamos dar um rolé?
- Ah, não vim vestido adequadamente para frequentar os lugares onde você anda.
- Por isso não. Escolha.
O amigo abrira o closet e lhe deixara boquiaberto com as muitas opções que ele lhe apresentava. Escolheu bem e ninguém falava que ele não fosse um grande empresário da sociedade daquela região.
Saíram.
Em uma das boates mais famosas da cidade, conhecera Molly. E os dois começaram encenar. Cada um com mentiras maiores do que o outro. Mas a mentira não durou muito tempo. Gilson não podia fingir por muito tempo. Saíram nas custas do amigo Sérgio cerca de mais dois meses. Até que teve que contar tudo para ela. No entanto, ela não teve a mesma hombridade. Manteve sua condição.
Um belo dia, Gilson telefonou para ela e resolveu fazer uma brincadeira.
- Eu sei de tudo.
Um silêncio se fez. Depois Molly disse.
- Como é que você soube.
Gilson se espantou. Mas resolveu continuar. Será que ela também estava brincando? Pensou.
- Não interessa. Sei de tudo.
- Por favor, me perdoe. Mas eu te peço ainda, não espalhe isso pra ninguém.
- Não sei. Preciso pensar.
- Por Deus. Ninguém pode saber disso.
- Mas eu sei. Você me diz o que sobre isso?
- Não posso dizer nada. A vida me levou pra isso e não posso me livrar do destino.
- Mas não tem vergonha de ter mentido pra mim?
- Claro que não. Você é só mais um. E, depois, você também mentiu pra mim e eu te perdoei.
- Mas sua mentira é muito maior. - dizia ele na intenção de descobrir o que se passava.
- Quer saber? Não vou ficar aqui escutando você me criticar. Não preciso disso. Nem sei por que ainda fiquei com você tanto tempo. Acho que foi porque você é bom no negócio. Mas o que adianta? É pobre que nem um cachorro de rua.
Gilson sentiu-se magoado, profundamente ofendido. Começou a ligação todo animado, fazendo uma brincadeira somente para quebrar o gelo que vinha se instalando entre eles nos últimos encontros desde que a levara para conhecer sua humilde casa e acabara nisso. Estava pasmo. Agora, não sabia como finalizar isso. Ela, no entanto, o sabia muito bem.
- Espera. Não desliga. Você tem que se explicar pra mim. - ele ainda tentou.
- Explicar nada. Eu me dou o nome que eu quiser. Sou dona do meu nariz, me sacrifico pra ganhar o meu dinheiro, que parece sujo, mas é com muito sufoco que me deito com todos esses homens para poder viver bem, pagar minha faculdade e ainda guardar unzinho. Se eu dependesse de homens como você já teria morrido de fome e, ainda, burra. Vá se danar com seu puritanismo e suas críticas.
E desligou o telefone. Gilson ainda ficou com o fone do aparelho na mão. Estava pasmo. Aquela moça não se chamava Molly e não era rica e morava em uma mansão no bairro Jardins. Realmente era pra ele se desconfiar, ela nunca queria leva-lo em sua casa. Mas o que mais lhe assustara fora a revelação de que ela era garota de programa. Seu coração disparou quando constatou ao lembrar-se do que ela falara.
Teria que comprovar isso. Saíra andando rumo ao bar onde sempre Molly ficava. Entrara e se escondera no pub. Viu quando ela chegou muito animada, como se nada de errado tivesse acontecido em sua vida. Sorria para todos e se aproximou do balcão perto do pub.
- Junior, me serve um uísque com bastante gelo? Igual ao de sempre, por favor. - disse ela.
- É pra já, Clara. - e o garçom ainda completou - Se livrou do cliente constante de ultimamente?
- Ele não era cliente, Junior. Mas me livrei dele sim. Basta de pobreza!
E de onde estava ele pode ainda ouvir as sonoras gargalhadas deles antes de sair. Lá fora, a chuva estava forte, mas ele nem se importara. Saíra andando nela até seu apartamento que não era perto. Lá dentro, chorou sentidamente a noite toda, sem forças para tirar as roupas molhadas. Isso lhe causou a infecção que hoje lhe acometia.
Na manhã do quinto dia, Sérgio, preocupado com o amigo que não aparecia na empresa, abria a porta de seu apartamento, encontrando-o vazio de vida.
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A dor enquanto ama - Em Contos
Historia CortaSão contos variados que narram histórias com temática de situações do amor ligadas ao sofrimento