Tudo deu errado naquele dia: um acidente de carro transformou o trânsito daquela manhã num caos, ela chegou atrasada ao trabalho e descobriu que o colega de departamento torceu o pé e não viria trabalhar, o relatório feito pelo estagiário recém-contratado estava com dados a menos e cheio de erros e então ela se viu trabalhando por três, os telefonemas que ela precisava não aconteceram e os e-mails que ela esperava não chegaram. Nem o almoço de apenas vinte minutos conseguiu dar jeito na situação, a solução foi mesmo permanecer trabalhando depois do expediente, até colocar a casa em ordem.
Ela foi a última a sair, foi ela quem apagou as luzes do escritório. Olhou o relógio, se corresse conseguiria pegar o ônibus das nove e vinte. O elevador chegou rápido, já que ninguém mais naquele prédio estava requisitando seus serviços. Quatro andares abaixo ela se despediu do porteiro com um aceno rápido e acelerou o passo, fazendo os saltos dos sapatos estalarem no pavimento da calçada. Para ganhar tempo, decidiu cortar caminho pela rua de trás do escritório, e esta foi a decisão pela qual ela se arrependeu durante cada um dos dias seguintes.
Se fosse durante o dia ou no fim de semana, aquela rua estaria abarrotada de gente entrando e saindo das lojas ou dos prédios lotados de escritórios, se acotovelando nos bares para aproveitar a noite de sexta-feira e sábado, bebendo e falando mal dos colegas durante a happy hour. Mas àquela hora, naquele dia, não havia quase ninguém ali. Ela seguiu com o passo apressado, ignorando o mendigo que tirou uma lata de refrigerante da lixeira e tornou a revirar o lixo em busca de mais. Seguiu no mesmo ritmo acelerado quando vultos surgiram do outro lado da calçada e não parou para ver quando os vultos tomaram forma de dois homens que se empurravam. Nem os gritos e insultos que os dois trocavam desaceleram sua caminhada. Ela estava mais de cinco metros à frente quando uma terceira voz se juntou ao berreiro, era de uma mulher que pedia calma. Os saltos de seus sapatos batendo na calçada ecoavam junto com a voz esganiçada da mulher que berrava nomes e pedia por favor para que os dois homens parassem de brigar. Ela continuou andando enquanto a voz da mulher ficou ainda mais alta e mais esganiçada. “Pelo amor de Deus”, a mulher berrava a plenos pulmões. Tudo o que lhe interessava era chegar no ponto a tempo de pegar o ônibus das nove e vinte. Mas então um som seco ecoou, reverberando pela rua inteira e a fez estancar. Um tiro e então silêncio absoluto.
Por um segundo ela não soube o que fazer. Refreou o impulso de se virar para ver o que tinha acontecido. Pensou em sair correndo, mas o barulho dos sapatos batendo no asfalto a denunciariam, rezava para que a confusão da briga a tivesse feito passar despercebida. Durante um instante que pareceu durar horas, ela segurou a respiração e ficou parada, só escutando e se perguntando o que fazer. Então a mulher voltou a gritar. “O que você fez?”, a pergunta ecoou por todos os lados.
E ela correu, como nunca havia corrido em sua vida. Conseguiu chegar no ponto de ônibus sem cair ou tropeçar. Olhou a sua volta e se viu sozinha. Tentou se acalmar, mas o coração insistia em bater como um louco se debatendo dentro da camisa de força. Respirou fundo um, duas vezes, na terceira as mãos continuavam tremendo. A toda hora olhava para trás esperando aquele assassino sem rosto aparecer e apagar a única testemunha de seu crime.
Mas ela não era a única testemunha. Era? Não. Havia o mendigo revirando o lixo. A mulher que gritava também era testemunha. E talvez não houvesse um “assassino”, ela não tinha como ter certeza de que um homem tinha de fato matado o outro.
Quase vinte minutos depois, quando o ônibus finalmente apareceu, sua mão ainda tremia ao fazer o sinal. Ela esquadrinhou o ônibus em busca de um bandido sem rosto ou de qualquer coisa suspeita – um hábito que levaria pelo resto da vida. E durante todo o caminho até sua casa ficou se perguntando por que não olhou para trás, por que não viu o que estava acontecendo, por que não ligou para a polícia. Mas telefonar para a polícia para dizer o quê? Que achava que um homem tinha sido assassinado? Isso só a envolveria mais ainda naquela confusão.
Ao descer do ônibus ela quase correu até a entrada de seu prédio. Apertou o botão do elevador continuamente até as portas se abrirem com um ruído metálico. Enquanto o elevador subia ela segurou firme a alça da bolsa com as duas mãos que insistiam em tremer. Assim que entrou no apartamento, trancou a porta e passou a corrente, conferiu se a porta estava mesmo trancada três vezes – gesto que se tornaria um ritual diário.
Naquela noite, e desde então, qualquer barulho a sobressaltava, não ousou desligar a luz do corredor e manteve a porta do quarto aberta e o telefone por perto. Depois daquela noite ela passou a viver em um estado de alerta fomentado pela constante sensação de que alguém a espreitava. Tudo porque, por acaso, naquele dia tudo deu errado, e a série de incidentes a levou ao lugar errado na hora errado e o medo a impediu de descobrir o que de fato tinha acontecido.