Cap 3

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"Tudo que se precisa em alguns momentos da vida é de um olhar que ultrapassa a matéria. O coração é um órgão vital que fica escondido e muitas vezes esquecido. E como dói...."

Eu já tinha conseguido andar três quarteirões quando vi um carro se aproximar e parar ao meu lado. Eu não olhei. Estava assustada.
Quando vi que alguém desceu, me irritei profundamente e gritei, sem nem mesmo olhar. Nada poderia ficar pior, né!
- se você veio me assaltar, sinto informar que eu não tenho nem dez centavos no bolso. Se quiser minhas roupas eu lamento informar que não custaram nem cinquenta reais. Se você está querendo receber dinheiro com sequestro, eu sinto muito, muito mesmo, mas você vai perder seu tempo. É bem capaz que meu pai te de dinheiro para você me matar, e vai ser pouca coisa. Eu sou pobre e não tenho muito valor.
Eu estava berrando, feito louca e gesticulando feito uma maluca que saiu do manicômio.
- se quiser abusar de mim, também está ferrado, vai ter que me matar primeiro. Eu vou lutar até a morte e olha que eu não estou me importando muito de morrer.
Quando vi que o ser humano não encostou nenhuma arma ou faca em mim, resolvi me virar e ver quem era.
Abri e fechei a boca várias vezes. Era o senhor poderoso. Em carne, osso e massa muscular. Muita massa muscular.
- eu só ia oferecer uma carona. Você não vai conseguir chegar em casa assim e veio parar inocentemente nesse lugar.
- ah, agora você está preocupado comigo?-perguntei colocando as mãos na cintura.
- na verdade não. É que como eu disse, sou o melhor delegado que existe e sei quando devo corrigir uma injustiça.
- senhor justiceiro, pode ficar tranquilo, eu não vou entrar nesse seu camburão só para te livra da consciência pesada.
- primeiro que meu carro não é um camburão. É uma Land Rover. Segundo que eu não sou justiceiro. Terceiro que eu não estou te convidado, estou dando uma ordem. Entra nesse carro agora!
Ele apontou para a porta. Era só o que me faltava agora. Alguém me dando ordens.
Perdi todo a compostura e apontei o dedo bem no nariz dele.
- escuta aqui seu idiota, você não é ninguém para me dar ordens. Então vai se F-E-R-R-A-R!
Eu tive a certeza de que ia levar um tiro nesse exato momento, quando ele colocou a mão no bolso da calça. Bom, pelo menos a morte ia ser rápida.
Com toda a calma do mundo, ele tirou uma algema e colocou nos meus braços. Pisquei. Pisquei de novo. Mais uma vez. E depois não pisquei mais.Eu não estava acreditando nisso.
- você ficou maluco?- berrei.
- meu trabalho também é cuidar da sociedade e você é um perigo para si mesma. Está sozinha, andando por ruas perigosas. Na verdade andando não, se arrastando. Eu prefiro que você facilite a minha vida. Eu estou com fome e com uma mulher linda me esperando na cama.
- você só pensa em comer?
- sim- ele respondeu com um sorriso. Era a primeira vez que eu via seus dentes- eu só penso em comer. As duas coisas!
Babaca um milhão de vezes.
Sem dizer mais nenhuma palavra, ele me pegou no colo e me colocou sentada no banco da frente do carro.
Eu não tenho certeza se ainda respirava. Mas eu tinha algumas certezas. Primeiro, ele era muito cheiroso. Segundo, ele não tinha nenhuma gordura no corpo, era uma parede de músculos. Terceiro, eu fiquei com vontade de morder a bunda dele. E quarto, eu era muito idiota por pensar tudo isso.
Ele deu a volta e se sentou. Atou meu cinto e o dele e deu partida no carro.
- me diga seu endereço.- pediu enquanto ligava o GPS.
Falei sem muita vontade e abracei meus exames, frustrada. Abracei vírgula né, encostei no peito, porque eu tinha algemas nas mãos.
Ele arrancou com o carro e ligou o som.
- eu posso ser uma assassina, sabia.
Eu queria irrita-lo. Simples assim.
- você pode, mas não é. Conheço pessoas como você e sei de longe que você não seria capaz nem de matar os cogumelos do jogo do Mario.
- engraçado, você achou que eu fosse ladra a algumas horas atrás.
Dei uma risada irônica e bufei.
- eu não achei. Eu só estava averiguando. Esse é o meu trabalho.
- mas me manteve naquela delegacia o dia todo. Você me fez perder um dia da minha vida.
- você tem uma vida pela frente, é uma criança ainda. Um dia não vai fazer diferença.
Fechei os olhos e deixei que aquilo tocasse bem fundo no meu peito. Ele não fazia ideia de como um dia faria diferença.
- nossa você joga Mário e eu que sou a criança? - falei tirando o foco do assunto que me incomodava.
- eu jogo o que tenho vontade. E eu gosto de Mário.
Certo. Problema dele.
O silêncio tomou conta do carro. Encostei a cabeça no assento e fechei os olhos. Eu não estava mais afim de conversar.
Só abri de novo quando o carro parou. Mas não estávamos em frente à minha casa. Estávamos em frente à um hospital particular.
- eu não moro aqui.
- jura?- ele respondeu já desatando os cintos- achei que você morasse. Hospitais são ótimos em hospedagens. Comida sem graça e camas péssimas.
Ele pegou minhas mãos e tirou as algemas, desceu do carro e bateu a porta tão forte que achei que os vidros cairiam a qualquer momento.
Abriu a minha porta e fez sinal para que eu descesse.
- vamos ver o seu pé antes de te levar para casa. Eu sei que você está com dor.
Quase me deixei comover por sua preocupação. Ninguém se importava com as minhas dores. Mas vejam bem, quase. Me lembrei logo que eu o odiava e que só estava nessa situação por causa dele.
Desci lentamente e quando meu pé tocou no chão, gemi. Só não chorei porque era feio. Mas eu percebi que estava doendo mais ainda.
- deixa eu te ajudar.
Ele se aproximou e me pegou no colo de novo. Dessa vez, resolvi aproveitar e respirei tão forte seu perfume, que seria necessário metade da Amazônia para fazer a fotossíntese para que os outros seres humanos pudessem respirar também.
- eu não tenho dinheiro para pagar o médico.
- eu não me lembro de ter te pedido dinheiro.- ele falou.
Como ele era educado! Me impressionava.
Entramos no pronto socorro e ele me colocou sentada em uma maca. Saiu para falar com um enfermeiro e preencheu alguns papéis. Em menos de dez minutos ja tinha um médico para me atender. Dinheiro fazia toda a diferença.
Limparam meu pé, fizeram um curativo no dedo e enfaixaram o tornozelo.
- você teve uma luxação. Nada grave, mas precisa ficar alguns dias de repouso para melhorar. Sem andar. Posso te dar um atestado se você trabalhar- o médico disse, já pegando os papéis na mão.
- não será necessário- respondi. Eu não faltaria do trabalho, nem por decreto.
A empresa já tinha demitido mais de 200 funcionários. Eu não podia correr esse risco.
O senhor prepotente ficou nos observando o tempo todo.
O médico me deu alguns medicamentos e fui liberada.
Dessa vez fui levada até o carro em uma cadeira de rodas, guiada por um enfermeiro. Ele mesmo me ajudou a entrar no carro.
- agora vamos para sua casa.- por fim o delegado falou.
Só então eu percebi que nem seu nome eu sabia. Decidi imaginar como ele se chamaria, só para distrair meus pensamentos, enquanto ele dirigia em silêncio.
Olhei de rabo de olho algumas vezes, para ver se os nomes se encaixavam. Pensei em Lucas, Marcelo, Tadeu, Rodrigo e mais uns dez nomes. Que coisa mais boba eu estava fazendo.
- você não para de me olhar Nicolle. Quer perguntar alguma coisa ou só confirmar se minha beleza é real?
- é que....é...-nossa, eu estava muito constrangida- eu não sei seu nome.
- e nem precisa saber.
Meus Deus! Quanta educação.
Voltei a olhar para frente e ignorei-o por completo.
- porque não pegou o atestado? Você não trabalha?- ele perguntou quebrando o silêncio.
- você não precisa saber. Não te interessa.
Boa! Devolvi na mesma moeda.
- se não me interessasse, eu não estava perguntado.
Olhei pra ele inconformada.
- como você é infantil. Quantos anos tem? Me parece que uns dez. Primeiro você joga Mário e agora responde como um adolescente mal criado.
- engraçado que eu nunca me comporto assim. Me parece que você traz meu melhor lado. Eu costumo sem bem pior.
Deus pai, se esse era o seu melhor, coitado da família dele, da mulher. Será que ele tinha mulher? Bom, ele tinha dito que tinha uma mulher linda na cama, mas podia ser namorada ou colega só né. Será que a beleza compensaria seu jeito bruto e chato?
Acho que não. Ele não se encaixava na minha lista de amores dos livros. Em nada. Eu nem sei o porque estava tentando colocá-lo nela. Definitivamente, me drogaram no hospital.
- Nicolle, eu perguntei se essa é a sua casa.
De volta ao mundo real, eu olhei. Eu nem tinha visto que chegamos.
- sim, essa é a minha casa.
Na verdade a casa do meu pai. Eu nunca me senti pertencendo aquele lugar.
- você não vai trabalhar amanhã. Estamos combinados?
- como você sabe que eu trabalho?
- eu sei de tudo. Você aceitou o atestado, mas vi como se preocupou.
- eu preciso trabalhar. Ou perco o emprego.- desabafei.
O pior seria chegar no trabalho. Meu pai precisaria me levar e eu duvidava que ele fosse fazer isso. Eu não conseguiria nem chegar ao ponto de ônibus.
- aqui está meu cartão- ele me estendeu - me ligue se precisar. Eu sei que você vai precisar.
Gargalhei.
- nem morta quero precisar de você.
Eu achei que ele me mataria, mas tudo que fez foi abrir um belo sorriso. O mais lindo que eu já tinha visto. Inferno!
- vocês sempre precisam.
Irritada, desci sem sua ajuda e bati a porta com toda a força do mundo. Entrei em casa mancando e nem olhei para trás. Vai que eu eu precisasse mesmo!

Por um amor como dos livros (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora