Neena e o Farol

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Na frente da minha janela, existe uma árvore estranha. Ela tem uma certa personalidade. Ou de repente sou eu que tenho tanta que transborda. Não sei, não importa. O que quero dizer é que a árvore me acordou. Ainda estava escuro quando seus galhos secos, longos e finos, como os dedos de uma pianista que um dia conheci, bateram rítmica e suavemente contra a janela. O vento frio que vem do mar se misturou com o uivo do Jão, o cachorro meio lobo, meio bizarro do meu vizinho gente boa, e eu acordei devagar.

É outono, mas aqui em Sleepy Rock, o outono é como um inverno mais light, e quando digo light, quero dizer frio, chuva, frio, nada de neve, só vento, e eu disse frio? Pois é. Mas eu nasci e cresci aqui, então estou acostumada.

Ainda estava escuro quando saí de casa. Ignorei a calçada e fui andando no meio da rua, na direção do trabalho. Uma das coisas que eu adoro em acordar cedo é isso: o silêncio. Sendo filha única, sou acostumada com o silêncio, já que não cresci com um monte de irmãos barulhentos ou irmãs birrentas. Também estava aproveitando o silêncio porque sabia que assim que chegasse ao trabalho, o barulho seria constante, ainda mais hoje.

No caminho, minha companhia era apenas o som dos meus coturnos no chão da rua. As cortinas das casas ainda estavam fechadas e os poucos carros estacionados estavam molhados pela chuva fina misturada com maresia. O cheiro do mar é a única coisa que nunca me agradou muito. Dependendo da estação, pode ser gostoso ou carregar cheiro de peixe podre. Além disso também preciso levar me consideração o medo que eu tenho de ondas. Quando se mora em Sleepy Rock, é fácil amar ou temer o mar. Eu tenho horror, ainda mais depois do que ele fez com a minha vida.

Passei pela casa do Sr. Coronha e Jão veio me receber. Ele é a coisa mais linda e babona do mundo! Era para ser um lobo ou um pastor alemão, mas não sei a cruza que fizeram ou o que disseram para o Sr. Coronha quando ele comprou, só sei que Jão é um monstro! Mesmo assim é adorável e me ama!

- Ei, menino! Preparado pra hoje? Não vá ficar rouco! - digo, afagando as orelhas do bicho.

Jão fica em pé nas patas traseiras e quase passa da minha altura - e olha que não sou tão baixinha! Seu pelo é tão preto que parece que estou afagando uma sombra. Se não fosse pelo branco dos dentes e o rosa da língua, não o reconheceria até estar perto demais. Até porque ele é muito ninja!

- Vai me fazer companhia hoje, menino? Vai? Vou te esperar, hein? - digo com voz de menina marcando um encontro (algo que já não lembro mais o que é) e beijo sua imensa cabeça, bem no meio dos olhos. Adoro Jão. Jão é fofo.

Segui meu caminho subindo a rua. O relevo de Sleepy Rock é meio estranho. A ilha parece uma montanha meio achatada no centro. Para chegar do cais até a cidade tem algumas ladeiras, a cidade é bastante rochosa ao redor, mas tem um bosque lindo no meio que continua até o outro lado da ilha.

- Bom dia, Neena - chamou Dona Regina ao fechar a porta de sua casa, sua voz agradável cortando o silêncio. Ela é uma figura! Gordinha, baixinha, absurdamente loira, viúva.

- Bom dia, Dona Regina. O Tinoco vem hoje? - perguntei ao dar meia volta e andar de costas para o meu destino, para que pudesse continuar a olhar para ela.

- Acho que sim, Neena. Tudo vai depender do plantão dele. Mas sabe como ele sempre tenta, principalmente hoje - ela falou ao atravessar a rua e seguir por uma transversal à que estávamos.

Tinoco é o filho MUITO gato da Dona Regina. Ele é residente em um hospital no continente e só vem nas férias ou quando tem uma folguinha. Nos damos superbem. Gostamos das mesmas coisas: tipo musical, gênero cinematográfico, rapazes.

- Vou passar lá mais tarde para levar um lanchinho pra você - ela falou sorrindo.

- Ô, Dona Regina, obrigada! A senhora sempre salva minha vida - falei, e ela riu gostoso, alto demais para o horário, mas quem se importa? Dona Regina é a dona da padaria da rua principal. Ela é responsável pela maioria das comidas que eu consumo. Não sou ótima cozinheira e como moro sozinha, Dona Regina é essencial na minha vida. Ela faz uns biscoitinhos de abóbora com canela que deveriam ser proibidos de tão gostosos!

Neena e o FarolOnde histórias criam vida. Descubra agora