Troca de Mentes

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Certo dia acordei com o suor descendo pelo meu rosto e ensopando minha camisa. Me sentei na cama dura como pedra pensando em como ela havia endurecido em algumas horas. Esperei meus olhos se acostumarem à escuridão do quarto e logo percebi algo.
Não era meu quarto.
Me levantei e logo que meus pés descalços tocaram o chão senti o áspero piso de cimento, tomado por poeira e sujeira. Levantei os pés rapidamente e procurei por um chinelo, brigando com a escuridão.
Procurei por um interruptor, mas em vão. Apesar de já estar enxergando alguns contornos, ainda estava muito escuro e aquele quarto era completamente novo pra mim, eu nunca havia estado nele.
Tentei abrir a porta e descobri que estava trancada, logo comecei a ficar realmente assustado, com o coração batendo na boca. Pensei em gritar pela minha mãe ou pelo meu pai, mas antes mesmo de gritar por ajuda eu já sabia que eles não iriam me escutar, não ali.
Sentei no chão, já não me importando com a sujeira e comecei a chorar, chorar como um bebê, tinha o direito disso, afinal, ainda não havia completado nem 14 anos.
Mas, na verdade, o pânico de verdade ainda não havia batido, mas não tardou. Bateu quando eu estava ainda sentado chorando, bateu quando eu passei a mão pelo rosto para secar os olhos e senti a pele um pouco mais áspera, quando passei a mão pela cabeça e não senti meus cabelos ondulados, senti apenas um cabelo curto, raspado. Então percebi que estava novamente tendo aqueles sonhos nos quais eu me transformava em outra pessoa, em algum lugar desconhecido. Apesar de acontecer com certa frequência, eu nunca me acostumara, sempre morria de medo de não voltar ao meu verdadeiro corpo.
Me levantei e respirei fundo, tentando não entrar em pânico. Encontrei alguma coisa pontuda no chão, um pedaço de arame, imaginei, e sabe-se lá como consegui abrir a porta.
A claridade do outro cômodo me cegou por um momento, mas logo percebi que alguma coisa estava errada, eu não estava no meu tempo, no meu ano, talvez nem no meu século. Eu estava em uma casa antiga, parecia largada haviam anos, estava tudo empoeirado e o chão já havia ganhado uma segunda camada, esta de poeira.
Fui até um espelho enorme que estendia-se até o teto, sobrepondo-se a uma mesa com algumas fotografias de uma jovem com uma criança de colo, depois essa mesma jovem pra lá dos quarenta anos com um rapaz negro e alto e no final da mesa apenas ela sentada em uma cadeira alta e com uma expressão extremamente triste no rosto. Mas o que chamou a minha atenção foi o meu reflexo escuro no espelho após eu jogar a poeira pro lado com a mão.
Eu era um garoto negro, com cicatrizes em toda a extensão do rosto, olhos inflamados (que só começaram a coçar depois que fiquei sabendo que estavam inflamados, incrível como é nosso cérebro), e uma orelha faltava um respeitável pedaço.
Mas não me demorei muito naquele reflexo, meus olhos foram parar na mesa, atrás das fotografias empoeiradas, em um diário de couro gasto e com um pedaço de papel pardo saindo pra fora. Abri o livro e percebi que o papel pardo era uma notícia recortada de um jornal antigo. Li rapidamente o título e o primeiro parágrafo da notícia:

"Homem é preso após assassinar criança recém-nascida"
"Brad Rockert, 26, foi preso após confessar assassinato de Dollis Crossaint, 2 meses de idade, e tentativa de assassinato de Isabella Crossaint, 22 an..."

O restante do jornal estava rasgado.
Voltei minha atenção para o diário, onde frases desconexas foram escritas em letras rabiscadas:

"Encontrei Brad"
"Dollis bem dorme muito"
"brad está apanhando como um porco que é"

Fechei o diário sem entender muito o que aquilo queria dizer.
Olhei ao redor da casa e percebi que havia uma porta que dava para a cozinha. Andei cautelosamente até lá e logo ao entrar senti o cheiro de podridão vindo de panelas há muito não utilizadas e nem lavadas, haviam restos de comida pela mesa e pela pia. Me virei rapidamente para sair da cozinha, mas parei com um barulho que me causou arrepios, era um barulho rouco, próximo de choro e vinha de trás da porta do outro lado da cozinha. Abri a porta e ela rangeu em protesto, fui engolido pela escuridão e o cheiro de mofo.
Fui até a sala e peguei um lampião a gás que me lembrava de ter visto um tempo atrás. Voltei até a cozinha e percebi que o caminho que se estendia pela porta era uma escada longa e profunda. Desci com cuidado e me dei parado de frente a uma porta de ferro, era dali que o som havia saído minutos atrás, havia alguém ali.
Se eu estivesse com a cabeça no lugar, teria percebido que a porta estava trancada por fora, mas não prestei atenção nisso, apenas abri a corrente e entrei. Passei direto pela porta e levantei o lampião e com o canto do olho vi uma cadeira de balanço com uma senhora. Me aproximei cautelosamente.

"Olá?!"

A senhora se balançou num esgar que pretendia ser um riso, que na verdade se transformou numa tosse carregada.

"Olha minha quer...rrida. Parece que o senhor Br...Brad veio nos visitar".

Ela olhou pra cima e deu um sorriso, expondo dentes podres e escassos. O riso se transformou numa gargalhada e logo depois em um acesso de tosse.

"Como ousa sair do seu quar...quarto?" ela gritou "olha o que você fez com a pequena Do...Dollis!"

Foi tudo muito rápido, me lembro de no susto ter caído no chão e batido a cabeça, mas antes de desmaiar me lembro daquela visão terrível. A velha senhora Crossaint levantou o que um dia foi sua filha, agora já em estado de decomposição completo e restando praticamente apenas os ossos. Depois disso apaguei.
Acordei um tempo depois com uma dor insuportável concentrada na parte de trás da cabeça. Mas eu não era aquele pobre menino que havia sido pego por uma mulher que há muito já havia perdido a sanidade e o feito de Brad Rockert apenas por ser negro, eu não estava naquela casa assustadora, eu era apenas Daniel Alphonse, um garoto de 13 anos. O que sempre me passa na cabeça é se aquilo foi real ou apenas um sonho.
Apesar dos anos passados, eu nunca procurei saber se em algum lugar do mundo alguma Isabella Crossaint existiu. Depois daquele dia, não tive mais sonhos em que eu me encontrava no corpo de outra pessoa e agradeço por isso.
Talvez eu jamais deva saber se aquilo realmente aconteceu, às vezes é melhor colocar a sanidade na frente da curiosidade.

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