ERNESTO PRESTES INVESTIGA: O Caso do Vaso Chinês

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O Caso do Vaso Chinês

I

Era Natal de 1919.

Lembro-me que, no dia 23 de dezembro, recebi de um amigo um convite informal para a ceia na residência da ilustre senhora Antônia Bueno, viúva de grande prestígio na alta roda paulistana.

Eu, que, apesar de não apreciar de todo esse tipo de reunião, com pessoas de cérebro oco falando de coisas fúteis, aceitei de imediato, pois pelo menos seria melhor do que passar a véspera natalina com Shakespeare e Diderot. Às vezes as palavras dos sábios podem muito bem ser substituídas por algumas risadas e goles de vinho. Mente e corpo precisam disso, ainda mais quando se vive uma realidade solitária.

Assim, na noite do dia marcado, vesti um casaco novo e saí rumo à casa de Dona Antônia, disposto a desligar o cérebro para me entreter um pouco.

Eu nem suspeitava que naquela véspera de Natal eu presenciaria, e solucionaria, um caso tão misterioso e pitoresco...

Ou melhor, foi um caso que se auto-solucionou.

II

Cheguei à residência da senhora Bueno por volta das dez da noite. O local estava bem iluminado e já do lado de fora era possível ouvir as vozes animadas e os risos nada contidos dos convidados. Senti-me como um alemão idealista entrando dentro da Conferência de Paz de Paris, e tive o breve impulso de querer me atirar escondido dentro de alguma trincheira. Acabei vencendo-o.

Sorrindo disfarçadamente, subi os poucos degraus na frente da casa e bati à porta. Fui recebido por um senhor de idade avançada, boca sem dentes e cabeça sem cabelos, que me disse com uma voz rouca, quase tumular – a ponto de eu ficar esperando moscas ou vermes saírem por seus lábios:

- Boa noite, senhor...

- Prestes, Ernesto Prestes – respondi prontamente, impaciente só de ouvir aquele idoso falar. – Eu fui convidado para a ceia de Natal e...

- Oh, entre.

Entrei sem demora, procurando livrar-me daquele que supostamente era o empregado mais velho da casa, cuja vagareza era, a meus olhos, maior que a de mil tartarugas juntas. No vestíbulo, deixei meu chapéu num suporte e rumei para a sala de estar, onde todos se encontravam.

Antes de descrever a sala de estar em si, prefiro primeiramente identificar cada um dos indivíduos ali presentes, todos conhecidos meus da alta sociedade de São Paulo: Onofre Bevilacqua, sujeito gordo e desajeitado que, promissor (talvez nem tanto) poeta, recentemente aderira ao Parnasianismo; Tadeu Melo, delegado de barba rala e careca lisa, além de uma peculiar mania de desconfiar de tudo e todos; Júlia Cunha, conhecida atriz de teatro de beleza singular e modos encantadores, que recentemente encontrava-se envolvida numa montagem de “Otelo”, de Shakespeare; Basílio Nogueira, proprietário de vários armazéns pela cidade e muquirana incomparável; e finalmente a senhora Antônia Bueno, rechonchuda e bem arrumada, que sorria para todos na sala mesmo sem possuir motivo algum para tal – e com fama de conseguir comer uma quantidade de alimento que valia por todos ali.

Agora vamos ao cômodo: tinha belos sofás e poltronas trazidos da Europa, com bonitas e macias almofadas de Istambul. Perto da porta que levava à sala de jantar havia um caro relógio de pêndulo que fornecia as horas com um “tic-tac” vicioso. No teto estava pendurado ostentoso lustre dourado e, para concluir, sobre uma mesinha próxima à janela que dava para a rua, encontrava-se grande e inegavelmente exótico vaso chinês, decorado com gravuras de dragões e outros motivos orientais. Diziam as más bocas que Dona Antônia adquirira tal peça recentemente por um valor exorbitante, e que desde então passara a ser o mais novo mimo da viúva, acima até do gato persa Xerxes, no colo da mulher naquele momento.

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