O evento do destino

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O sol estava a pino enquanto Finn e eu cavávamos uma pequena cova na terra fofa do cemitério da Esfera onde morávamos. O suor que escorria de nossas testas era limpo nas mangas longas de nossas camisas, enquanto bebíamos goles frescos da água que pegamos direto da fonte mais cedo. Não me interprete mal, não somos uma dupla de assassinos tentando acobertar um crime bem-organizado, apenas planejamos um enterro digno para um coelho que me fez companhia durante muitos e muitos anos.

Meu nome é Lotus Conne, tenho dezoito anos, e o animal que repousa para sempre na caixa de sapatos decorada com fitas coloridas é Robertus, um coelho marrom que encontrei durante o Festival Anual de Primavera há muitos anos. Desde então, Robertus foi um amigo inseparável que acabou por falecer de velhice. Obviamente, meu amigo não poderia ser enterrado em qualquer lugar, afinal de contas, ele era um membro da família.

— Meu melhor amigo... — Finn leu o que eu havia escrito na tampa da caixa e se virou em minha direção, encarando-me com seus intensos olhos azuis parcialmente cobertos pela franja cor de cobre que caía pela testa.

Finian Olson — que eu jamais chamava dessa forma, já que Finn dizia que quando as pessoas o chamavam de Finian era porque ele havia aprontado alguma coisa — era meu outro melhor amigo. Nós dois tínhamos a mesma idade e desde sempre frequentamos a mesma escola na Esfera, o que nos tornou inseparáveis. Até mesmo nossos planos para o futuro eram os mesmos, como almas gêmeas habitando corpos diferentes. Não que tivéssemos algum envolvimento amoroso; era mais como se fôssemos a mesma pessoa.

— Uma garota pode ter dois melhores amigos. — Dei de ombros e Finn achou melhor não discutir sobre esse assunto em um momento tão delicado.

Quando a caixa com o corpo do meu adorado Robertus foi finalmente enterrada, uni minhas mãos e orei para que ele partisse em paz. Era estranho não tê-lo mais ao meu lado, mas ao mesmo tempo sentia que a vida estava me preparando para uma segunda etapa.

— Você não acha que este é o lugar mais bonito do mundo? — disse enquanto subia a enorme árvore dos fundos do terreno. O cemitério ficava no topo da montanha, e lá de cima era possível ver toda a cidade e o sol se pondo atrás dos montes, colorindo o céu em uma mistura de rosa e laranja, típica deste local. Não havia nada que não fosse mágico na Esfera da Felicidade.

— Acha que depois de amanhã ainda poderemos voltar a este lugar? — Era como se Finn falasse mais consigo mesmo do que comigo.

Amanhã será o grande evento do ano no qual todos os jovens de dezoito anos terão seu destino decidido pelo grande sábio da Esfera. Sabíamos que todo ano alguém era banido para a Esfera Comum; era de praxe que um jovem tivesse seu futuro destruído dessa forma. Contudo, eu tinha confiança de que jamais seria banida, afinal de contas, ninguém da minha família tinha passado por algo assim. Corria o boato de que se algum parente, mesmo que distante, fosse banido, as chances de que o mesmo acontecesse com os demais membros da família eram grandes. Minha mãe Dovie e meu pai James passaram pela avaliação e foram enviados diretamente para a universidade da Esfera, assim como meus avós, bisavós e tataravós. Até mesmo minha irmã mais velha, Annora, não teve nenhum problema. Por conta disso tudo, eu tinha certeza absoluta de que realizaria meu grande sonho de ir para a universidade da Esfera e meu futuro começaria a caminhar conforme meus planos, que incluíam uma casinha perto da montanha, um marido e três filhos. Pode parecer um tanto bobo, mas eu via o sucesso dos meus pais e sempre sonhei em ser como eles: viver uma vida pacata e calorosa com filhos e fadas ajudantes. Nada poderia dar errado e meu coração estava mais feliz do que nunca.

Separei-me de Finn há três quadras de minha casa e segui o resto do caminho sozinha, enquanto andava pelas ruas de pedra que tanto amava. Havia um tom rústico e belo em todo canto: nas casinhas de pedra que pareciam castelinhos, no cheiro adocicado que vinha das bebidas com mel típicas da região, no barulho dos sapos nos lagos próximos e no brilho forte das estrelas que iluminavam meu caminho. Ao atravessar a rua, ouvi a voz do senhor da mercearia — sua barriga havia crescido consideravelmente nos últimos anos — chamando-me pelo apelido "moleque Conne". Embora ninguém mais me chamasse assim, afinal de contas, meu cabelo havia crescido e eu usava mais vestidos que metade das garotas da cidade, para aquele senhor eu sempre seria o moleque Conne, o que até chegava a ser carinhoso. Acenei para ele do outro lado da rua e ele acenou de volta, enquanto eu seguia o meu caminho.

A Esfera Comum (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora