Mito das Correntes (conto, ficção)

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"Havia duas vozes, duas irmãs, presas em minha mente

Permiti, então, que suas metáforas se libertassem" 

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— Primogênita, eu testemunhei mais um morticínio. — Diâni lacrimejava diante de sua irmã mais velha. Sua pele apresentava arranhões e cortes superficiais.

Natêma direcionou o olhar para a outra.

— Você sabe que quase nada podemos fazer por Eles. Lhe falei isso incontáveis vezes, minha irmã. Para seu bem, afaste-se deles.

— Apenas queria de alguma forma ajudá-los... — lágrimas vieram à tona na face inconformada da mais nova.

Largando seus afazeres, Natêma se sentou ao lado dela.

— O que você viu dessa vez? — Tentava confortá-la.

— Eu... estava próxima de uma das entradas. Ouvi gritos muito mais desesperados que o comum vindo do Subterrâneo... Perdoe-me, mas eu não pude ignorar. — Diâni revivia memórias recentes e cruéis. — Desci pelo túnel e nas paredes da caverna havia pessoas aprisionadas recentemente. Elas estavam magríssimas e mal se sustentavam em pé. Essas não me ameaçaram e negaram minha ajuda como se tentassem me repelir.

— Assim como quase todos Eles. Continuou para o interior da caverna? — A primogênita parecia amargamente familiarizada com a descrição.

— Sim... ficava cada vez mais escuro e frio quanto mais descia. Vários estavam presos nas rochas em alturas diferentes, até mesmo pendurados. Mas os gritos vinham de longe, porque esses estavam pacíficos. Fui até o antro, onde começavam os pilares. — Diâni encarava as próprias mãos livres e feridas enquanto narrava. — Um grupo com os pulsos acorrentados num pilar envergado me viu, e Eles se tornaram hostis. Tive medo que eles me atacassem pessoalmente, mas só atiraram pedras e ossos em mim.

A mais nova fechou os olhos e engoliu. Mais gotas escorreram pelo rosto jovem iluminado por feixes de luz diurna. Natêma segurou uma das mãos dela.

— Minha irmã, Eles estão lá porque assim querem. Todas as vezes que nós da superfície tentamos interagir, eles agem de forma violenta. E infelizmente, eles são bem mais numerosos que a gente.

— Você diz "a gente", mas Eles são pessoas iguais a nós. Eu vejo isso. Posso ver isso. — Diâni reabriu os olhos.

— Eu também via assim, até entender que correr o risco de ajudá-los nunca valia a pena. — A mais nova parecia refletir sobre. — Se precisa continuar contando, continue, pequena irmã.

E ela assentiu.

— Nunca tinha ido até o centro do antro. As tochas e fogueiras mal iluminavam. Nem pareciam que estavam ali para isso. Quanto mais perto dos gritos, mais violenta era a reação daqueles que me viam caminhando livre. Então vi o Pináculo pela primeira vez — ela disse com uma mistura de horror e espanto. As memórias estavam vívidas. — Era tão grande, que ele desaparecia na escuridão do topo da caverna.

— Não vou negar que também já estive lá quando era ingênua. Essa é a maior construção que Eles fizeram e que negam terem feito. Assim como todos negam terem construído os outros pilares.

— Mas isso é ridículo. Não existe nada natural com a forma de um pilar.

— Diâni, Eles são cegos porque se cegaram. Se são esqueléticos, é porque recusam alimentos. Vivem na escuridão porque rejeitam a claridade daqui de cima. Se realmente foi até lá, presenciou isso também.

Diâni meditou sobre essas palavras. Sim, era verdade e ela testemunhou como Eles causam danos a si mesmos e a todos ao alcance.

— Lembro-me quando me contava do Pináculo. Jamais pude imaginar até ver ele. Milhares e mais milhares de pessoas de idades diferentes acorrentadas pelo pescoço, pulsos e tornozelos nesse pilar gigantesco que eles protegem com as próprias vidas. Foi então que vi a cena... — Diâni baixou a cabeça um instante, envergonhada de si mesma. —- Eu juro irmã, que vi pessoas que queriam se libertar e estavam partindo as próprias correntes e era delas que vinham os guinchos por ajuda. Em sua grande maioria eram mulheres. Tentei puxar o braço de uma pessoa que tentava fugir, mas eram muitos deles... Machucaram meus braços e meu rosto quando puxaram ela de volta e arrastaram todos novamente para o Pináculo... e... — Ela soltou a irmã para levar as mãos à face, reunindo forças para continuar —, e... os violentaram no pilar até a morte como se fossem criaturas totalmente irracionais e dominadas pelo ódio puro. Só então os gritos desesperados pararam.

Natêma colou ao lado da irmã para a envolver em um abraço forte pelas costas.

— O que lhe fizeram?

— Quando boa parte deles finalmente me notaram, começaram a berrar comigo. Ameaças, expressões sem sentido. Diziam que todos que não estavam acorrentados estavam condenados. Corri de volta para fora do antro e para o túnel, e mesmo depois de sair da entrada da caverna, ainda me sentia atacada, com suas mãos ásperas e unhas afiadas tentando agarrar minha pele. Foi horrível, irmã.

— Diâni, nós duas tivemos sorte de ter nascido aqui em cima, e mais sorte ainda de não termos sido aprisionadas por correntes em algum pilar. É por isso que devemos evitar Eles. É por isso que devemos ficar longe do Subterrâneo. — Natêma entendia bem a revolta e frustração da irmã. — Veja: até mesmo aqueles que finalmente enxergam os horrores e miséria do Subterrâneo raramente conseguem subir.

— Irmã — as lágrimas da jovem havia cessado e seu rosto estava levantado novamente —, eles também disseram, quando tentaram me acorrentar, que o Pináculo iria ruir e matar todas as pessoas da superfície.

— Se isso for verdade e um dia acontecer, os primeiros a morrerem serão Eles mesmos, soterrados pelas paredes do Subterrâneo.

— Você tem razão minha primogênita. Não há como salvá-los.

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