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Na manhã seguinte, minha pele arrepiava sem qualquer aviso. Qualquer movimento, qualquer toque ou brisa reacendia aquela sensação quente em meu corpo, e minha mente divagava para Clarkson.
Nossos olhares se encontraram duas vezes no café da manhã; em ambas, seu rosto trazia a mesma expressão de contentamento. Era como se um segredo delicioso pairasse entre nós.
Embora nenhuma de nós soubesse ao certo se os boatos a respeito de Tia eram verdadeiros, decidi tomar a expulsão dela como um aviso e guardei a noite anterior para mim. O fato de ninguém mais saber a tornava ainda melhor, mais sagrada até, e eu a protegia como um tesouro.
O único lado ruim do beijo foi ter tornado todos os momentos longe de Clarkson insuportáveis. Eu precisava vê-lo de novo, tocá-lo de novo. Se alguém viesse perguntar o que tinha feito naquele dia, seria incapaz de responder. Cada um dos meus suspiros pertencia a Clarkson, e nada teve importância até eu voltar ao quarto para me vestir para o jantar. A promessa de vê-lo novamente era a única coisa que me mantinha inteira.
Minhas criadas estavam em perfeita sintonia com minhas novas ideias de visual, de modo que o vestido daquela noite era ainda melhor. Um tom de mel, com cintura alta e a saia mais volumosa atrás. Talvez fosse meio extravagante demais para o jantar, mas adorei mesmo assim.
Tomei meu assento. Clarkson piscou para mim, me fazendo corar. Eu queria uma iluminação melhor para poder enxergar o rosto dele em detalhes. Tinha inveja das garotas do outro lado da sala: toda a luz do pôr do sol entrava pelas janelas e pousava sobre seus ombros.
— Ela está brava de novo — murmurou Kelsa.
— Quem?
— A rainha. Olhe para ela.
Levantei os olhos discretamente para a mesa principal. Kelsa tinha razão. A rainha parecia irritada até com o próprio ar. Ela pegou um pedaço de batata com o garfo, encarou-o e depois jogou de volta no prato.
Algumas garotas se sobressaltaram com o barulho.
— Queria saber o que aconteceu — comentei, também cochichando.
— Acho que nada. Ela é uma daquelas pessoas incapazes de ser feliz. Se o rei lhe desse férias a cada quinze dias ainda não seria o bastante. Ela não ficará satisfeita enquanto não formos todas embora. — A voz de Kelsa estava repleta de desprezo pela rainha e por sua postura irritada. Eu entendia o porquê, claro. Ainda assim, por causa de Clarkson, não conseguia odiá-la.
— Me pergunto o que ela vai fazer quando Clarkson escolher — cismei em voz alta.
— Não quero nem pensar nisso — Kelsa disse entre um gole e outro da sidra. — Ela é a única coisa que me faz não querer o príncipe.
— Eu não me preocuparia tanto — brinquei. — O palácio é grande o bastante para evitá-la sempre que possível.
— Bem pensado! — ela comentou, para em seguida olhar ao redor e conferir se alguém nos observava. — Acha que tem algum calabouço aqui para botarmos a rainha?
Tentei segurar mas caí na gargalhada. Não havia dragões para mantermos numa jaula, mas ela chegava perto.
Tudo aconteceu muito rápido; imagino que era essa a intenção. Vi as janelas se despedaçarem quase simultaneamente, atravessadas por objetos vindos de fora. Ouviram-se os gritos estridentes de algumas Selecionadas enquanto o vidro chovia em estilhaços sobre elas; aparentemente, Nova foi atingida na cabeça pelo objeto que quebrara a janela atrás dela. Ela se encolheu na mesa, abraçando o próprio corpo, enquanto algumas tentavam olhar para fora e ver de onde vinham aquelas coisas.
Observei aqueles objetos esquisitos no meio da sala de jantar. Pareciam enormes latas de sopa. Quando apertei os olhos, tentando decifrar os rabiscos na lateral da que estava mais perto de mim, a lata bem ao lado estourou e começou a soltar fumaça pela sala.
— Corram! — berrou Clarkson, enquanto outra lata explodia. — Saiam!
Independente dos problemas entre ambos, o rei agarrou o braço da rainha e a arrastou dali. Vi duas garotas correrem para o meio da sala de jantar, e Clarkson as empurrou para fora.
Em questão de segundos, todo o ambiente se encheu de fumaça preta, que somada aos gritos dificultava minha concentração. Virei para o lado à procura das garotas sentadas perto de mim. Elas tinham sumido.
Tinham fugido, claro. Olhei para o outro lado, mas me perdi imediatamente na fumaça. Onde estava a porta? Respirei fundo para tentar me acalmar, mas em vez disso comecei a tossir por conta dos gases. Senti que era alguma coisa pior que simples fumaça. Já tinha chegado bem perto de uma fogueira antes, e aquilo… aquilo era diferente. Meu corpo queria descansar. Sabia que não estava certo. Eu deveria querer resistir.
Entrei em pânico. Só precisava encontrar um rumo. A mesa. Se eu encontrasse a mesa, bastava virar à direita. Agitei os braços ao redor, tossindo por conta da fumaça que inalava ao respirar tão rápido. Tropecei e dei com a mesa, que não estava onde eu pensava que estaria. Não importava: era suficiente. Apoiei as mãos sobre um prato, ainda cheio de comida, e corri as mãos pelo tampo da mesa, esbarrando em copos e tropeçando nas cadeiras.
Eu não ia conseguir.
Não conseguia respirar, e estava tão cansada.
— Amberly!
Ergui a cabeça, mas não dava para ver nada.
— Amberly!
Bati a mão contra a mesa, e o esforço me fez tossir. Não o escutei de novo, e só enxergava a fumaça.
Bati a mão contra a mesa outra vez. Nada.
Tentei novamente, e em vez de acertar a madeira, senti outra mão sob a minha.
Nos encontramos em meio aos gases, e ele me arrastou para fora às pressas.
— Venha — ele conseguiu dizer enquanto me puxava. Minha sensação era de que a sala de jantar não acabava nunca, mas então dei com o ombro no batente da porta. Clarkson segurava minha mão e insistia para eu continuar, mas tudo que eu queria era descansar. — Não. Venha.
Avançamos pelo corredor, onde vi algumas outras garotas, deitadas juntas no chão. Umas estavam sem fôlego, e pelo menos duas tinham vomitado por causa do gás.
Clarkson me puxou para o final da aglomeração de garotas e nos atiramos ao chão juntos, resfolegando em busca de ar puro. Era impossível que aquele ataque — e eu estava certa de que se tratava de um — tivesse durado mais de dois ou três minutos, mas me sentia como se tivesse corrido uma maratona.
Eu estava deitada sobre o braço, de forma bem desconfortável, mas me mexer requeria muito esforço. Clarkson estava imóvel, mas dava para ver seu peito subir e descer. Um segundo depois, ele se virou para mim.
— Você está bem?
Precisei de toda a minha força para responder:
— Você salvou minha vida — pausei, sem fôlego. — Eu amo você.
Várias vezes eu havia imaginado como seria dizer aquelas palavras, mas nunca daquele jeito. Ainda assim, não consegui me dar ao luxo de me arrepender: meu cérebro começou a apagar enquanto os sons dos guardas atacando ecoava em meus ouvidos.

Havia alguma coisa presa ao meu rosto quando acordei. Levei a mão à cabeça e encontrei uma máscara de oxigênio, mais ou menos como a que vira depois de Samantha Rail ter sido pega por aquele incêndio.
Olhei para a direita e vi que a escrivaninha onde a enfermeira costumava sentar e a porta estavam praticamente ao meu lado. Na outra direção, quase todos os leitos da ala hospitalar estavam ocupados. Não consegui contar quantas garotas estavam lá, o que me levou a pensar em quantas estariam bem… e se havia alguma que não escapara.
Tentei sentar na esperança de ver mais. Quando estava quase ereta, Clarkson me viu e veio na minha direção. Não sentia muita tontura ou falta de ar, então arranquei a máscara. Mesmo ele estava devagar, ainda superando os efeitos do gás. Quando finalmente chegou até mim, sentou na beira do leito e perguntou em voz baixa:
— Como se sente? — sua voz soava áspera.
— Que… — Tentei limpar a garganta; minha voz também estava esquisita. — Que importância isso tem? Não consigo acreditar que você voltou lá para dentro. Existem vinte e poucas versões de mim aqui. Há apenas um de você.
Clarkson estendeu a mão, chamando a minha.
— Você não é exatamente substituível, Amberly.
Apertei os lábios; não queria chorar. O herdeiro do trono tinha corrido perigo por minha causa. A sensação que acompanhava tal constatação era quase bela demais para suportar.
— Senhorita Amberly — disse o doutor Mission, aparecendo do nada. — Fico feliz em vê-la finalmente desperta.
— As outras estão bem? — minha voz parecia a de outra pessoa.
Ele e Clarkson trocaram olhares rapidamente.
— Melhorando — o médico respondeu afinal. Ambos omitiam alguma informação, mas me preocuparia com isso mais tarde. — Mas a senhorita teve sorte. Sua Alteza resgatou cinco garotas, incluindo a senhorita.
— O príncipe Clarkson é muito corajoso mesmo. Sou tão sortuda.
Eu ainda segurava a mão dele, e naquele momento apertei-a um pouco.
— Sim — o doutor Mission respondeu —, mas me perdoe por questionar o propósito de tamanha coragem.
— Perdão?
— Alteza — ele replicou em voz baixa —, o senhor certamente sabe que seu pai não aprovaria tanto tempo dedicado a uma garota indigna do senhor.
Teria doído menos se ele tivesse me dado um tapa.
— As chances de ela gerar um herdeiro são, quando muito, irrisórias. E o senhor quase perdeu a vida para resgatá-la! Ainda não relatei a condição dela ao rei, pois estava certo de que o senhor seria misericordioso e a mandaria para casa assim que soubesse. Mas se isso continuar, terei de informá-lo.
Houve uma longa pausa antes de Clarkson responder.
— Acho que ouvi várias garotas dizerem que suas mãos se detiveram um pouco demais no corpo delas durante os exames hoje — ele disse friamente.
O médico franziu a testa.
— O que o senhor…
— E qual delas disse que você cochichou algo bastante inadequado, mesmo? Não importa, imagino.
— Mas eu nunca…
— Não faz diferença. Sou o príncipe. Minha palavra está acima de qualquer questionamento. E se eu meramente sugerir que você ousou tocar minhas mulheres de maneira antiprofissional, acabará diante de um pelotão de fuzilamento.
Meu coração disparou. Queria detê-lo, dizer que não era necessário ameaçar a vida de ninguém. Com certeza existiam outras maneiras de contornar o problema. Contudo, eu sabia que não era hora de falar.
O doutor Mission engoliu em seco. Clarkson prosseguiu:
— Se você dá algum valor à própria vida, sugiro que não interfira na minha. Estamos claros?
— Sim, Alteza — concordou o médico, acompanhando as palavras de uma breve reverência para garantir.
— Excelente. A senhorita Amberly está em boas condições? Pode ir para o quarto descansar com conforto?
— Vou pedir para uma enfermeira verificar imediatamente.
Clarkson o dispensou, e o médico saiu.
— Você acredita na ousadia que ele teve? Vou me livrar dele de qualquer jeito.
Apoiei a mão no peito de Clarkson e pedi:
— Não. Não, por favor. Não o machuque.
Ele sorriu.
— O que quero dizer é que vou mandá-lo embora, arranjar um posto para ele em outro lugar. Muitos governadores gostam de ter um médico particular. Ele se sairá bem em algo assim.
Suspirei aliviada. Desde que ninguém morresse, estaria tudo bem.
— Amberly — ele sussurrou. — Você sabia que talvez não pudesse ter filhos antes de ele dizer?
Neguei com a cabeça.
— Tinha uma preocupação. Já vi acontecer com outras onde vivo. Mas minhas duas irmãs são casadas e têm filhos. Esperava que eu também pudesse ter.
Minha voz embargou, e ele me conteve:
— Não se preocupe com nada disso agora. Passo mais tarde para ver como você está. Precisamos conversar.
Ele beijou minha testa, ali mesmo na ala hospitalar, onde todos podiam ver. Todas as minhas preocupações desapareceram, ao menos naquele instante.

A Rainha - Um Conto De A Seleção (Oficial)Onde histórias criam vida. Descubra agora