Prólogo

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Ocorreu um bug na sua linha do tempo!

Não seria fantástico se tivéssemos o poder de revisitar momentos do passado? Visualizar memórias sem o esforço de puxarmos lembranças possivelmente já bem alteradas do nosso cérebro? Relembrar acontecimentos sem termos que procurar álbuns de fotos esquecidos e empoeirados? Essa utópica possibilidade pode já estar no nosso presente.

Whatsapp, Twitter, Instagram, Wattpad, entre outras redes sociais - todas essas formas de comunicação progressivamente detém cada vez mais o que pensamos. Cada foto, comentário, curtida e clique que damos são gravados e salvos nos diversos espaços criptografados da vasta internet; assim como um bebê que tem os primeiros passos filmados pelos pais. Até melhores que nossos próprios aparelhos eletrônicos sozinhos, elas juntam cada informação nossa sem qualquer restrição ou acumulação.

No Facebook, por exemplo, temos nossa própria linha do tempo. Todos os dias, antigos momentos nossos são trazidos à tona para o nosso "divertimento". Visualizando posts e memórias de anos atrás, damos risadas, choramos, ficamos surpresos com o quanto mudamos, enfim, nos damos conta de que, mesmo superficiais, lembranças constroem nossa personalidade - e isso é crível.

Mas infelizmente temos uma falha. Estamos ligados demais para ligarmos.

Não ligamos para a possibilidade do que algo humano poderia fazer com todas essas informações. Comentários maldosos que já fizemos, selfies obscenas, nossa falsidade, tudo está lá, armazenado - e ao contrário do nosso cérebro ou álbuns empoeirados, são quase indestrutíveis.

Essa falha nos leva a um bug. Um pequeno erro que faz com que, ao contrário do seu dever de nos mostrar memórias passadas, nossa linha do tempo nos mostre um acontecimento especificamente três meses no futuro em uma cidadezinha de São Paulo.

Nesse futuro, uma garota leva seu aparelho brilhoso às paredes de um corredor estreito e mal iluminado. Em meio aos tropeços de uma caminhada gradual e aflita, ela tenta controlar a respiração pesada que impulsiona sua arritmia.

A lanterna do seu celular seria muito mais eficaz em sua fuga se ao menos soubesse exatamente onde está - os corredores do prédio eram como labirintos naquela escuridão toda. Andava em círculos há quase 10 minutos, tendo a sensação de estar sendo observada pelo percurso.

Passos curtos e rápidos são sua maneira de não fazer barulhos. A luminosidade com certeza já atrairia muita atenção, mas ela não precisa de mais. Nervosa e assustada, desejava apenas poder parar pensar.

Sente algo bater em seu pé. Pula e gira os calcanhares, apontando a tela brilhosa para o chão na tentativa de ver no que acabara de pisar, mas para abruptamente; um longo rastro de sangue no chão indica que o que veria seria mais um corpo de algum amigo. Seus joelhos tremem, quase cedendo.

Ela se apoia na parede, ainda indicando a luminosidade do celular para as manchas abaixo. Respira e inspira profundamente antes de voltar a deslocar seu braço sobre o encalço.

Preciso ver, ela pensa. Por alguma razão crê que não terá paz caso ignore a pessoa ao seu lado. Hesitando, mas persistente, leva a luz do aparelho centímetro por centímetro até a coisa que a faz ter que abafar com as mãos um pequeno guincho.

Um par de óculos se sobressai de dentro da grande poça vermelha. Mesmo entre tanta sujeira e escuridão a armação continua inconfundível - a garota reconhece o seu dono no exato instante. Lágrimas despencam pelo seu rosto e ela sabe que não tem mais coragem de encarar o corpo do amigo. Não sabe agora, da mesma forma, se tem coragem de continuar a caminhada pelo corredor.

Um súbito estrondo mais a sua frente faz com que levante seu celular quase como se tivesse um espasmo. As palpitações de seu coração parecem aumentar a cada segundo - seu peito lateja em contrações rítmicas e angustiantes. Nota que mesmo iluminando boa parte do caminho ainda enxerga praticamente nada; a mão que segura o aparelho mascara totalmente seu rosto em uma tentativa subconsciente de defesa. Tremendo, ela inclina a tela luminosa, e dessa vez não consegue sufocar o grito.

A menos de um metro de distância a figura esguia de uma garota se projeta como um fantasma iluminado. Curvada de costas sobre o canto da parede esquerda como se estivesse machucada, mesmo de longe aparenta ainda estar viva. Tenta se manter de pé e há sangue em sua cabeça, o que aproxima seu cabelo de algo ruivo.

A menina, salientando o celular para a outra, chama pelo nome da amiga, que continua imóvel. Começa a ir devagar em sua direção até ter firmeza em suas pernas, e então acelera, quase correndo.

Agora mais próxima confirma pelas respirações da garota o que já havia percebido. Chama mais uma vez o nome da amiga, que finalmente reage.

- Tá tudo bem? - pergunta, exasperada. Claro que não estava bem. - Eu te ajudo a levantar. Nós precisamos achar um jeito de sair daqui.

Ela dá apoio pelos cotovelos da garota, que ainda permanece de costas, com as mãos no estômago aparentando estar fraca. Mal fala em meio a uma crise de tosse.

- Você foi ferida? Deixa eu ver! - pede.

A garota se vira lentamente, como se carregasse algum peso. Em seus braços, envolvido de muito sangue, há um martelo de aço comum, o qual segura fortemente com a mão direita.

- O quê é isso? - a garota à sua frente questiona, dando um passo pra trás. Ela move seu celular do martelo ao rosto da amiga, deixando-o cair ao encarar a fúria de dois enormes olhos azuis - O que você fez?! - grita.

É tarde demais. Quando a primeira martelada a atinge bem na mandíbula seu corpo é levado ao chão como um saco de batatas. O forte gosto metálico em sua boca nem se compara a dor que sente.

Continua gritando. Ainda não entende bem o que acontecera. Tenta pedir ajuda, mas emite apenas gemidos. Sente seus dentes, agora deslocados, flutuarem sobre o sangue em sua boca. Joga os braços para o lado em uma tentativa falha de alcançar seu celular.

A outra garota continua a encarando com ódio e frieza. Afasta-se um pouco, indo até o aparelho caído. Tecla na tela por alguns segundos até finalmente ativar o flash da câmera, filmando sua vítima.

Por meio de muito esforço a menina no chão rola até a parede ao lado. Ficando contra a luz da câmera do seu próprio celular, tenta precariamente se apoiar diante o concreto. Tremendo, vomitando seu sangue e ainda lutando, finalmente clama:

- Por favor... Para... - é interrompida.

O segundo golpe atinge sua nuca. Mais forte, raivoso e fatal, a leva ao chão novamente para nunca mais levantar. Enquanto agoniza naquele chão frio, sendo observada por quem um dia achou que conhecera, desconectada de todos que ama, ela se lembra.

Usando os últimos estímulos daquilo que julgara um dia como ultrapassado, acha em sua própria mente um detalhe que tempos atrás via como inocente e fútil. Se lembra de uma conversa gostosa e "inovadora" com os amigos, diálogos que provavelmente decidiram esse desfecho. Lembra de momentos em que olhar para a tela de um celular era a única coisa importante do seu dia. Lembra de uma época em que todas essas lembranças ainda eram interessantes pra se reviver.

Também lembra que agora é tarde demais para mudar as coisas.

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