Em um piscar de olhos

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Tudo que lembro é do choque, de minha respiração desritmada e caótica, buscando em cada sopro um instante a mais de consciência, agarrando-me a cada respiração como um cristão agarra-se a Deus em seus últimos momentos de vida. Devagar, a dor e a incerteza foram cessando e meu último resfolegar se deu de forma dramática e anêmica, quase um balbuciar enigmático no meio da escuridão, como que se me despedisse do mundo. Não lembro de nenhuma luz ou de anjos me buscando, lembro apenas de sentir meu corpo todo adormecer e de lentamente sentir minha consciência esvaindo-se a cada segundo. Lembro que em pouco tempo a dor tornou-se algo prazeroso e não sentia mais frio, medo ou angústia. Estava entrando em um estado alterado, quase em êxtase, algo que jamais havia experimentado.

Agora não mais sentia dormência ou medo, sentia como se minhas veias pegassem fogo e meu corpo todo estivesse flutuando em um mar de água morna. Talvez essa sensação seja por causa de meu sangue que escorre ao redor de mim, talvez seja meu corpo tentando se reestabelecer do choque, ou quem sabe Deus realmente exista e esta seja a sensação de seus dedos tocando minha pele. Não sei há quanto tempo estou assim, encarando o céu, porém ele nunca me pareceu tão azul. Gostaria de poder virar minha cabeça e ver os rostos que minha visão não permite distinguir, consigo ouvir um barulho de choro, abafado por uma sirene, algumas pessoas gritando, por que tantas pessoas me cercam?”

    No mesmo instante um som metálico e escandaloso ecoa em sua mente e em um único movimento a menina se põe sentada na cama, sua respiração ofegante e seu suor frio não escondem que ela esteve tendo um pesadelo.

    “Era tão real, pensei que estava morrendo, maldito pesadelo…” – pensa consigo mesma a garota, enquanto seus batimentos cardíacos voltam ao ritmo normal.

    - Camila, venha já tomar seu café! Você vai se atrasar novamente para a escola. Todos os dias é essa novela! Maldita hora em que não deixei você ir morar com seu pai.

Grita uma voz feminina, cheia de repreensão e raiva.

    Os olhos da menina se fecham e por um segundo ela deseja que o pesadelo tivesse sido real e que sua vida tivesse se esvaindo pela estrada, mais que depressa ela abre os olhos e afasta tal pensamento com uma respiração pesada e profunda.

    - Estou indo.

    Não indiferente ao chamado, ela se arruma, junta seus materiais escolares e em alguns minutos seus passos descendo as escadas podem ser ouvidos da cozinha.

    - Mais um pouco e tinha mandado os bombeiros te tirarem da cama. Terei uma conversa muito séria com seu pai hoje, seus dias de vagabundagem acabaram.

    Sem nem olhar a mãe nos olhos, ela dá uma mordida em um sanduíche pega algumas bolachas e sai porta afora, dando um adeus, mais suspirado que pronunciado. Quando a menina cruza a porta, e o sol da manhã de outono toca sua face, por alguns instantes ela se sente leve, como se nada mais na vida a incomodasse, o vento em seus cabelos a lembra de um tempo que há muito passou. As lembranças fluem e a fazem viajar, enquanto cada passo a deixa mais perto do ponto de ônibus, onde todos os dias ela pega a linha que cruza a cidade e a deixa em frente à porta da escola.

    Alguns passos antes de chegar ao seu destino, ela para e fica olhando uma cena inusitada, do outro lado da rua: duas mulheres bem vestidas e visivelmente assustadas tentam afastar seus cachorros, que em uma luta de pequenas ferras tentam atacar um ao outro, os pequenos latem e se lançam um contra o outro como se estivessem em uma luta pela sobrevivência. Não é a cena peculiar, e até certo ponto cômica, que deixa a menina perplexa e sim a sensação de déjà vu, como se aquela cena tivesse sido filmada e ela estivesse vendo apenas um replay.

- Eu já vi isso acontecer. - Fala baixinho consigo mesma.

Uma mulher gorda, carregada de sacolas, encara Camila e com uma expressão intrigada, diz:

- Não entendi, menina, o que você disse?

- Desculpe, não disse nada, apenas pensei alto. - Responde a menina.

A mulher faz uma cara de decepção, notavelmente a intenção dela era bater um papo durante os tortuosos minutos que separavam sua casa de seu trabalho.

    “Onde foi que eu vi isso acontecer?”, pensa Camila consigo mesma, “que droga odeio quando fico com essa sensação estranha.”

    Ela embarca no ônibus e se dirige aos bancos no fundo do veículo, onde senta e se recosta, para descansar os olhos alguns minutos até que chegue o ponto dela. A paisagem monótona de prédios e casas torna quase impossível resistir ao sono e ela cochila por apenas alguns minutos, tempo suficiente para que ela passe de seu ponto. Quando ela acorda o ônibus já está chegando ao ponto final e inevitavelmente ela já se prepara para uma boa caminhada de onde está até a escola.

    - Não acredito que passei do ponto, como sou burra. - diz para si mesma. Quando ela põe o pé fora do ônibus, seu coração para, suas pernas tremem, ela sente um arrepio que vai desde a base da espinha até a cabeça.

    “No meu sonho, eu vi isso tudo; os cachorros, a mulher com as sacolas, eu perdendo o ponto, isso tudo fez parte do meu sonho!”. Seu coração dispara e um suor gelado começa a escorrer de sua testa, lhe faltam forças e ela mal consegue andar até um banco.

    “Eu vou morrer, está tudo igual ao sonho. Eu preciso ir para casa!”. O terror em seu coração vai crescendo conforme as partes do sonho vão lhe voltando à mente. Depois de alguns segundos, envolvida em uma espécie de transe, ela respira fundo e segue seu primeiro instinto, pegar um ônibus para voltar para casa.    

    Dentro do ônibus, tudo parece ainda mais conhecido e caótico: os rostos, os cheiros, os sons. Tudo isso passa por sua cabeça, como uma paisagem já conhecida.

  - Eu preciso pensar, eu preciso pensar. - diz a garota a si mesma, enquanto sua mão tira sua franja dos olhos que se revelam rasos d'água.

    O ônibus para e um pouco depois senta um garoto ao seu lado, este lhe dá um sorriso e lhe oferece um chiclete, O rosto da garota se retorce e se transforma em uma máscara de horror e espanto, ela literalmente pula por cima do garoto e se joga em direção a porta de saída que ainda está entreaberta, para o espanto de todos, e começa a correr como se alguém a perseguisse, como se desta corrida dependesse sua vida. Sua mochila se abre e seus materiais começam a cair pela calçada. Agora seus olhos já não conseguem conter o choro, e ela chora, soluça enquanto busca entender o que está acontecendo, sua cabeça viaja em pensamentos mil, enquanto suas pernas correm o máximo que podem, na esquina ela avança pela faixa de segurança. É então que, por um segundo, seus olhos se fecham e instantaneamente ela sabe o que vai acontecer.

“Tudo que lembro é do choque e de minha respiração desritmada e caótica, buscando em cada sopro um instante a mais de consciência, agarrando-me a cada respiração como um cristão agarra-se a Deus em seus últimos momentos de vida. Devagar, a dor e a incerteza foram cessando e meu último resfolegar se deu de forma dramática e anêmica, quase um balbuciar enigmático no meio da escuridão, como que se me despedisse do mundo. Não lembro de nenhuma luz ou de anjos me buscando, lembro apenas de sentir meu corpo todo adormecer e de lentamente sentir minha consciência esvaindo-se a cada segundo. Lembro que em pouco tempo a dor tornou-se algo prazeroso e não sentia mais frio, medo ou angústia. Estava entrando em um estado alterado, quase em êxtase, algo que jamais havia experimentado.

Agora não mais sentia dormência ou medo, sentia como se minhas veias pegassem fogo e meu corpo todo estivesse flutuando em um mar de água morna. Talvez essa sensação seja por causa de meu sangue que escorre ao redor de mim, talvez seja meu corpo tentando se reestabelecer do choque, ou quem sabe Deus realmente exista e esta seja a sensação de seus dedos tocando minha pele. Não sei há quanto tempo estou assim, encarando o céu, porém ele nunca me pareceu tão azul. Gostaria de poder virar minha cabeça e ver os rostos que minha visão não permite distinguir, consigo ouvir um barulho de choro, abafado por uma sirene, algumas pessoas gritando, por que tantas pessoas me cercam?

   Gostaria de ver minha mãe novamente, como será que ela está? Lentamente sinto meus olhos pesando e incontrolavelmente vou fechando-os. Vou pensando no que minha mãe está fazendo e como já sinto saudades dela. Esta é a última coisa que lembro pensar: que nunca mais poderei comer a comida de minha mãe ou lhe dar um abraço forte depois de um longo período de ausência, será que um dia vou encontrá-la novamente?”.

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