Por Entre Entranhas - Parte 1.

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Eleanor Crawford pôde ver nos olhos de seu marido a fúria corrompendo um bom homem, destruindo qualquer barreira entre sua humanidade e os extintos mais primitivos. Ela se encontrava jogada entre latas e sacos de lixos, imunda e exaurida por um medo constante que corrói sua alma. Com os olhos vidrados, assistiu ao show de horrores que acontece a pouquíssimos metros. Logo ali, na entrado do beco que agora a afugenta, Thomas Crawford se debate contra os monstros que tentam arrancar sua carne. Com cerca de dez metros de comprimento por apenas três de largura, o vão escuro e depredado entre duas lojas de departamento no centro de Madisonville parece se estreitar a cada passo recuado por Tom. O ar gélido da noite texana é inspirado com pressa pelos pulmões do homenzarrão de 1,92 metros, enquanto sua visão se ofusca por entre tantos vultos sedentos. Esses não eram os primeiros para Tommy, desde Houston ele vem derrubando as coisas a quem chama de "mordedores". Não é atoa, afinal, o grandão já viu o estrago que os dentes destes bichos podem causar. Para um simples editor de jornal que passava os dias atrás de noticias, ele é bem mais duro do que se pode imaginar. Sua musculatura definida e reforçada que tanto encanta a esposa se tornou uma arma preciosa em um mundo no qual a força é fundamental. Os reflexos apurados de quem tanto entrou em campo para partidas de futebol americano na juventude também se fazem extremamente úteis. Com trinta e dois anos e uma vida encaminhada, Thomas era só mais um sujeito comum, realizado pela família que construira e tanto amava. Como todos os outros, ele não podia imaginar que tudo mudaria tão de pressa. Assim como seu marido, a belíssima mulher de trinta anos mantinha uma vida feliz e saudável ao lado do esposo que tanto admira e respeita. Embora o casamento seja recente, o relacionamento entre eles é de longa data. Cresceram juntos em Dillon e desde a infância nutrem o amor único e verdadeiro um pelo outro, nunca tendo ou precisando de terceiros para seu bel-prazer. Como todo o casal, eles também brigam, discutem e se desentendem, porém nada disso tem importância vista a paixão incalculável que sempre os faz acabar em uma noite de amor ardente. Não importa o que aconteça, são amantes inseparáveis.

Atravessando o azulado do crepúsculo que iluminava o solo cimentado e gélido, a machadinha de cabo madeirado e lamina acinzentada corta o ar em um movimento abrupto, acertando em cheio o encéfalo do que um dia fora um mecânico. O sangue oleoso e negro jorra contra Thomas e o cadáver afro-americano de 1,78 metros, cerca de 50 anos e macacão esfarrapado vai ao chão. Ellie se reprime ao ouvir o baque do morto se espatifando no solo, tendo um tremor que percorre cada milímetro de seu corpo tenso, coberto por calças jeans escuras e uma fina regata em verde-musgo, deixando visíveis apenas às alças de seu sutiã preto. Seus pés usam um par-de-tênis próprios para corrida, com detalhes em roxo e verde-limão, sobre um fundo branco, momentaneamente encardido por uma camada de barro seco e amarelado, típico das regiões argilosas da boa e velha terra dos cowboys. Para Ellie, tais cores só mostram o quanto à moda, antes tão aclamada pela renomada arquiteta, é algo inútil e supérfluo numa realidade em quê quem sobrevive é sempre o mais forte. Por pensarem que logo voltariam para seu abrigo, o casal não se preocupou com o frio da noite que ouriçava os pelos de seus corpos e optou por roupas leves. Tom vestia calças sarja em coloração preta, além de uma camiseta em linho simples, branca, porém agora tingida pelos fluidos avermelhados remanescentes de miolos dilacerados. Diferente de Ellie, seus pés calçavam coturnos verde-oliva tamanho 44, cobertos por uma grossa crosta de sangue já seco e coagulado. Mesmo não sendo dos mais bonitos, aquele par de botas oferecia um conforto inestimável.

Os olhos se mantêm vidrados quando as largas espaldas de Thomas se flexionam e o enorme braço volta a ser erguido, enrijecendo músculos definidos e tornando veias dilatadas, reluzente ao luar. Mais um golpe firme e certeiro que leva outra das coisas ao chão, desta vez uma mulher branca de olhos ardentes, usando um vestido chamuscado e em farrapos, com os longos fios ruivos encharcados pelo fluido oleoso de entranhas. O crânio é partido ao meio com tal golpe, tendo mais sangue negro sendo jorrado contra o rosto enrijecido e inerte de Tom. Era incrível como a calma e a concentração se mantinham intocadas naquela situação. Mesmo com o tempo passando acelerado, o cansaço profundo, o medo incessante e o suor ardente que escorre pela testa e ensopa seus os cabelos negros, levemente ondulados e bagunçados, ele se mantinha focado em somente um único objetivo: Manter sua esposa viva.

Não disparando uma única bala das poucas reservadas na Beretta M9 alojada na parte de trás da cintura de Thomas, o grandalhão já havia aniquilado sete daquelas coisas somente com a machadinha ensanguentada, agora ás deixando amontoadas sobre o chão, mortas em definitivo. Por um breve momento, todos os gemidos e grunhidos haviam cessado, o silêncio da noite reinava nos ouvidos do casal, enquanto o cheiro podre podia ser sentido com maior clareza. Respirações ofegantes também podiam ser ouvidas ao som dos grilos ralos. Thomas por exaustão, Ellie por medo. O que era apenas uma missão de reconhecimento acabou saindo do controle no fim da tarde, quando os dois voltavam á pé para o apartamento suburbano em quê se alojavam. Perdida a noção de tempo e espaço, eles apenas fizeram o que foi preciso para se manterem vivos por pelo menos mais uma noite. Distanciaram-se da zona que pensavam ser segura e acabaram por ficarem encurralados naquele beco quando o sol já havia se posto. Ele apoia suas mãos aos joelhos e forma uma curvatura nas costas, respirando com a boca entre aberta e tentando retomar o fôlego. Por cima do ombro, Tom avista sua esposa que até então continuava imóvel e intacta, alojada entre duas lixeiras e os demais sacos de lixos. Olhando além do marido, ela gagueja, petrificada pelo pavor que dominava seu corpo e gelava sua espinha. Uma pequena sombra surge da escuridão vinda da rua, cambaleando e tropeçando por entre os cadáveres jogados ao solo como montes de estrume. Em um primeiro momento, apenas a testa de Thomas se franzi, com o homem buscando compreender o que havia de errado pelos olhos arregalados e gritantes da mulher. A mão direita de Eleanor é lentamente erguida. Tremulante, indica a criaturinha á aproximar-se aos poucos. Ela queria falar, o avisar de algum modo, porém nada era pronunciado pela garganta arranhada de Ellie. Tentando recuar, ambas as mãos voltam ao chão e deslizam o corpo para trás, se aprofundando entre as latas de lixo e tendo as costas barradas pela fria camada de concreto porcamente descoberto. Quando os grunhidos finos e descompassados finalmente são capitados pelos sentidos de Tom, uma faísca de clareza percorre seus nervos. O homenzarrão vira-se e seus olhos atingem a pequena infectada a dois metros de distância, sendo arregalados de instantâneo, congelados por uma fração de segundo. Com cerca de sete anos, o que um dia fora uma doce menininha mal atinge a altura da cintura de Thomas. No rostinho, antes angelical, agora habita um mar de escuridão. Pálida, morta e obscura. Nos olhos amendoados preenchidos por um branco-leitoso, há apenas um pingo vermelho-sangue, um último sobrevivente que, ao ser encarado pelo negro dos olhos de Thomas, parte o coração de quem sempre sonhou em ter uma boneca para si, mais um alguém a quem se preocupar e amar incondicionalmente, além de Ellie. Em meio ao caos dos dias fervorosos da epidemia mundial, este sonho ficou distante para o casal, quase esquecido. Nenhum dos dois já havia visto uma infectada tão jovem, na verdade, isto passava longe dos piores pesadelos de Thomas e Ellie lutava contra todo o tipo de pensamento que a pudesse tirar de foco, no entanto, o inadiável momento de uma primeira vez chegou como um tsunami de emoções devastador.

Com uma única lágrima escorrendo pela bochecha marcada por uma vida de trabalho de Tom, ele viu a pequena morta se aproximar com um passo por vez. Os grunhidos agora estavam mais altos e Eleanor continuava amedrontada, presa num pesadelo inacabável que não á deixava reagir. Os braços magros, esbranquiçados e perfurados por uma profunda marca de mordida foram erguidos, buscando atingir o rosto do homem inundado por uma tristeza avassaladora. Mordendo o ar, os pequenos dentes apodrecidos se chocavam com um baque seco, um som grotesco para quem quer que seja. Num movimento extintivo e brusco, a enorme mão esquerda de Thomas fora direta ao pescoço da monstrinha, impedindo qualquer avanço. O ódio descomunal que parecia possuir aquele corpo, buscando a todo custo atingir Thomas, aumentou vertiginosamente. Os longos fios louros e ensebados se agitaram no ar, as mãozinhas cruzaram por centímetros o rosto rígido de Thomas e os dentes continuaram seu baque sinistro com mordidas descompassadas e aceleradas. Quando, com uma leve pressão, os dedos do homem penetraram pela pele enangrecida e decomposta, o sangue espesso e negro jorrou em enorme quantidade, atiçando ainda mais a bravinha e petrificando o coração de Thomas. Ele pôde sentir suas unhas sendo fincadas na traqueia da pobre menina, sentiu a musculatura morta e enrijecida na ponta dos próprios dedos. O machado fora erguido e o coração de Eleanor se apertou. Thomas fechou os olhos, Eleanor os manteve vidrados. Cortando o ar, um único golpe. Firme e certeiro. Para Tom, misericórdia, para Ellie, monstruosidade.

Continua...

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⏰ Última atualização: Nov 28, 2016 ⏰

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