Era por volta das oito da noite, de uma segunda-feira, quando Alice chegou em casa e se jogou no sofá. Pensou em fazer um café. Era tarde, mas seu vicio a cafeina é grande ao ponto de não afetar mais seu sono. Cansada do trabalho, sentia como se um elefante houvesse sapateado em cima de si. Apesar de amar seu emprego, ao entrar no estagio probatório de seu concurso, naquele ano, descobriu que a defensoria publica era defasada e que ela teria muito mais trabalho do que achava. Mal começara e já tinha 9 casos para defender ao mesmo tempo. Era muito exaustivo e a fazia sentir uma responsabilidade enorme nas costas.
Ela já nem conseguia lembrar desde quando havia resolvido que a defensoria era seu sonho. A maioria dos colegas da faculdade de direito sonhavam em se tornar parte da promotoria, mas ela não. A defensoria promovia advogados a quem não tinha dinheiro para pagar um, e isso a fazia sentir útil, como se estivesse fazendo um trabalho de caridade ao fornecer possibilidade de justiça para pessoas que não tiveram oportunidades. Ela havia passado no concurso naquele mesmo ano, muito nova inclusive, com 24 anos, passou bem colocada em um dos concursos mais difíceis na área de direito: Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Orgulho dos pais? A prima exemplo que é citada em conversas chatas de tias? Passava bem longe disso. Seus pais, e sua família em geral, nem imaginavam essa conquista. A única pessoa que se orgulhava desse esforço era ela mesma.
Seus pais eram evangélicos e ao se assumir lésbica, ela se viu sem casa. Estava no final do último ano de ensino médio e sentiu necessidade de contar e compartilhar com eles o amor que estava sentindo. Ela sabia os riscos que correria, já havia os decepcionado antes ao se dizer ateia, porém, por mais irritados que estivessem ficado, eles haviam a levado a palestras e acampamentos na tentativa de a fazer mudar de ideia, até que simplesmente começaram a ignorar e desacreditar da sua descrença. Ela atribuía essa reação ao fato de ser uma filha exemplar na visão deles, não sair, tirar só notas boas e ajudar em casa. Mas a resposta desta vez foi muito diferente, além do sermão nada pacifico e terno, ela ouviu que ou retirava o que havia dito, ou iria para a rua. Desde então nunca mais os viu ou quis contato. Sempre que fica ociosa como esta nesse momento, jogada no sofá, se pega pensando no que eles pensariam se soubessem de seu estilo de vida atual.
Um som a emerge de sua memoria, por instinto ela pega seu celular:
*Mensagem de texto*
Mariana: Lili, Deus ta vendo você ignorar minhas mensagens!
Alice ri nervosamente para si, parecia que a mensagem veio pela profanação que havia cometido em pensamento. Coincidência divina ou bom timeing? Analisando a situação, o timing era ruim e a coincidência era irônica. Se tinha uma coisa em seu estilo de vida que não queria manter, essa coisa era Mariana.
Ao se levantar, na intenção de acabar com suas abstrações que traziam seus demônios, e ir em direção a pequena bancada preta da cozinha minuscula para fazer seu café, Rafael entra na sala gritando:
- Pô, Annalice chegou e nem avisa, eu queria te perguntar se você quer pedir pizza hoje! - Alice leva um susto.
Rafael era magro, alto, moreno com uma larga boca com dentes brancos e um cabelo preto cacheado. E Annalice era um apelido carinhoso dado por Rafael para Alice, era em homenagem a uma personagem de uma serie, que era advogada e lembrava seu jeito. Ele as relacionou pela personalidade explosiva e o curso de direito, era o sonho de Alice, por coincidência no auge da serie que trata sobre estudantes de direito, e começou a chama-la assim quando Alice se assumiu lésbica, já que a personagem namorou uma mulher. O apelido exprimia o carinho e intimidade que havia entre os dois.
- Claro, quando não quero pizza? - Ela diz rindo enquanto pega o coador de café.
- Por acaso você esta fazendo café? Me diz que não, preciso morar com você por pelo menos mais 5 anos pra ter grana pro meu apê, você não pode morrer de ataque cardíaco.
Alice morava junto com Rafael desde seus 18 anos, quando saiu da casa de seus pais. Rafael era seu amigo desde o ensino fundamental e todos achavam que era seu namorado, mas era no entanto, seu confidente. Sabia de tudo e a ajudava em tudo.
Ao saber que sua amiga estava quase virando mendiga, a chamou para morar com ele na casa dos pais. O que foi a salvação de Alice que estava decidida que sairia de casa após a discussão traumatizante e o ultimato intolerante. Por sorte, os pais de Rafael eram muito diferentes, a mãe, Vera, era socióloga e o pai, Adson, baterista, e é claro que a amavam, afinal, mesmo sendo muito engraçada e extrovertida, era estudiosa e centrada, e ajudava seu amigo em muitas coisas de escola. Eles a acolheram e ela os via como pais. No incio do ano seguinte, Mael, como Alice o chamava, resolveu que cursaria cinema, e ela recebeu a noticia que havia passado em direito. Vera e Adson os ajudaram a alugar um apartamento perto da universidade da cidade e eles moravam só desde então. Com estagio e bicos, foram juntando dinheiro e combinaram que sairiam da casa alugada pelos pais de Rafael, com gosto, ao juntarem uma boa grana para comprarem o próprio apê e morarem sozinhos. Desde o fim da faculdade, eles passaram a pagar o aluguel, mas como dividiam, ainda conseguiam juntar um bom dinheiro.
Ela faz uma careta e rebate:
- Mais fácil você morrer de cirrose antes!
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Algemadas (Romance lésbico)
RomanceArt. 121. Matar alguem: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Caso de diminuição de pena § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta pr...