Película mOrtA

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"Para onde agora, Helena?"

Observei seus pés tocarem o chão frio em meio à madrugada. O cigarro, aceso por uma chama fina, foi entre os lábios enquanto os olhos encontraram o quadro que havia em cima do criado mudo. O homem sorrindo ao seu lado na fotografia, encontrara enfim um caminho seguro- entre os braços úmidos e vermelhos de um lençol ensanguentado. Aquele mesmo lençol que acompanhava Helena em suas noites em claro. Insônia à noite e maquiagem nas olheiras de dia- era assim.

Desde que seu marido partira, ela não conseguia se decidir se era ele ou eu quem usava sua pele como cobertor todas as madrugadas. Mas Helena nunca me pediu para ir embora.

Eu acompanhei seus cambaleios pelo corredor escuro. Suas mãos trêmulas se apoiaram na porta do cômodo onde há anos aconteceu meu nascimento. Ali, entre a cama e a estante, no mesmo lugar onde uma adolescente se debruçara sobre os joelhos, puxando e arranhando a carne do próprio rosto, tentando desesperadamente se transformar em outra pessoa diante daqueles milhares de olhares que a reprovavam. Foi então que no aperto do meu abraço, ela encontrou o que tanto desejava.

Desde então nunca mais nos separamos, nem mesmo por um segundo. Eu estava lá quando ela espremia a barriga fazendo tudo sair pelo nariz e pela boca; fui o primeiro a ver seus ossos ficarem aparentes. Eu estava lá quando ela não tinha mais ninguém... Também presenciei seu casamento, e vi quando as brigas começaram. Seu marido não conseguia conviver com o fato de que ela me amava mais do a qualquer outra coisa.

Vi suas mãos se perderem pelo rosto, afundando os dedos pelos fios louros recém tingidos. A lágrima que logo encontrou seu zigomático fez silenciar aquela multidão. No espelho, o reflexo de nossa carne sob os ossos.

"Para onde agora, Helena?"

Uma mão foi no olho, arrancando a íris azul; a outra, caçou uma lâmina dentro da gaveta.

"Não é perfeita."

As unhas agarraram a carne da barriga, esticando-a com dificuldade como um tecido velho. E com a lâmina, fez chorar sangue desta. A dor subiu como um impulso cego, e uma mordida na língua fez os gritos se transformarem em soluços desesperados. Aquilo simplesmente não podia incomodar os vizinhos.

"Não é perfeita."

Ela fazia força contra a pele, mas a carne respondia com o sentimento de autodefesa. Suas mãos estremeciam e seus olhos lutavam para se fechar.

Um sorriso trêmulo surgiu em seu rosto por um instante, demonstrando satisfação com a carne viva sobre os órgãos da barriga.

Sua pose logo se desfez num cambaleio que lhe fez encontrar o chão frio. Um mar de sangue não demorou muito para surgir diante dela, e uma súbita crise de riso a mergulhou nestas águas vermelhas.

"Não é perfeita."

Os dentes foram até os dedos e arrancaram a carne deles. O mesmo foi feito em todos os outros lugares do corpo que eles puderam alcançar.

Até que a euforia de Helena se calou como o vazio de sua casa.

Eu assisti ela adormecer. Seus olhos não se fecharam dessa vez. Eles simplesmente se voltaram à mim, si vendo desaparecer, em meio ao silêncio que a lágrima em seu rosto exigia.


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⏰ Última atualização: Jan 31, 2017 ⏰

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