NAKS

24 1 0
                                    

   A primeira coisa que eu senti foi a chuva, e a primeira coisa que eu vi, foi o mar. Agitado, lançando espuma branca com fúria contra os paredões rochosos da torre onde eu me encontrava. Talvez seja por isso que eu esteja tão ligada a água.
  Abri meus olhos e me deparei com a escuridão momentânea. E depois, quando meus olhos se adaptaram, eu vi o mar. Chovia em meu corpo nu. Eu sentia frio e dor nos ombros, braços e um formigamento incessante nas pernas. Olhei ao meu redor tentando entender. Nos meus pulsos haviam argolas de metal negro, e dessas argolas saíam pesadas correntes que se estendiam até uma montanha próxima. A mesma coisa se constatava do outro lado, com meu outro braço, de modo que eu estava pendurada no ar, meu pés a vários metros de distância do chão, e mais distantes ainda, das ondas implacáveis.
  Fiquei nesse lugar, desse modo por muito tempo. Anos talvez.
  A terceira coisa que notei, após tomar consciência do meu corpo, foram as vozes. Muitas delas me assolavam a mente, dizendo muitas coisas ao mesmo tempo, sem nenhum significado importante. Aprendi o que elas eram na primeira vez que fui visitada.
  Ele era parecido comigo, ou ao menos, era o que eu pensava na época. Tinha dois braços, duas pernas e uma cabeça, e isso eu considerava a maior semelhança entre nós, pois tudo o que eu tinha viso eram as pedras nuas, as nuvens negras, os relâmpagos, a chuva e o mar. Mas o fato de ele ter membros era a única coisa que nos tornava parecidos. Era extremamente musculoso, tinha uma pele dourada e olhos verdes, totalmente verdes, sem a parte branca, sem a parte preta. Ele tinha um cabelo branco trançado para trás e usava um saiote de algo que deveria ser couro. Ele se aproximou de mim e disse:
- Está ocorrendo agora, logo eles escolherão.
  Mil coisas eu podia ter perguntado, já que eu não sabia
A) O que estava ocorrendo
B) Quando era agora
C) Quem eram "eles"
D) O que seria escolhido
E) Quem era eu
F) Quem era ele
  E mais um monte de coisas, mas apenas me balancei um pouco e apontei com o pé, dizendo:
- O que é aquilo?
- O mar - Disse o sujeito e saiu, descendo uma escada que levava para dentro da rocha.
  Agora calculo que demorou ao menos um ano para "escolherem", e quando aconteceu, eu era muito diferente.
  Sozinha, começei a indagar as coisas e encontrar as suas respostas, pois as vozes em minha mente respondiam as perguntas. Eu estava em uma torre esculpida numa montanha a beira mar. Os dias não passavam, pois não havia sol. A única claridade vinha dos relâmpagos e eles me agradavam bastante, pois me permitiam uma visão completa de tudo. Eu estava acorrentada com o rosto virado para o mar. Meus braços, sempre estendidos pelas correntes não doíam mais do que o "normal" pois eu já me acostumara com a dor. Recebia visitas regulares de seres parecidos, mas diferentes do primeiro que falara comigo, cada um tinha uma pele de alguma cor diferente, e isso eu gostava. Mas reparei que todos escondiam a virilha com saiotes ou calças, o que acabou por me deixar atormentada com relação ao fato de estar nua. Foi com esse intuito então, o de não ficar pelada diante de meus visitantes, que eu descobri um perigo maravilhoso.
  A magia.
Em primeiro plano, eu descobri que as sombras eram vivas. Como? As vozes me contavam seus segredos. Quando eu fazia uma pergunta, elas a respondiam. Assim eu descobri que as sombras, o mar, os relâmpagos, as rochas e tudo ao meu redor possuía uma alma, e se eu me concentrasse, eu podia ouvir cada coisa separadamente, e que as vozes em minha mente, eram as vozes das coisas. As minhas correntes murmuravam "frio, frio, frio" quase incessantemente. As rochas raramente falavam, e quando falavam eram coisas simples e aleatórias como "luz, água, escuro, fogo". As ondas do mar eram altas e eu o ouvia claramente a esbravejar "Montanha odiosa que se ergue diante de mim! Vou atacar-te até que sejas reduzida a grãos, que se movem em minhas profundezas de acordo com minha vontade. Ai de ti! Ai de ti!" E muitas coisas semelhantes ele dizia.
  Tentei comunicar-me com ele, mas minha voz não chegava até ele, e se chegava, não lhe dava atenção. Mas eu percebi outra coisa que dizia palavras coerentes e precisas, e estas estavam muito próximas de mim. Pois cada cavidade era preenchida por sombras que corriam dos relâmpagos. "Luz ingrata, assusta-nos sem piedade. Deixe-nos diante de nossa sincera reflexão" e assim as sombras conversavam consigo mesmas, e logo percebi que eu era a única que ouvia as vozes das coisas, pois quando vinham me visitar, todas as matérias próximas gritavam contra o ser que caminhava em minha direção. Perguntei-lhe então se os gritos das coisas o seguiam aonde ele fosse. E disse-me que as coisas não gritavam. Eram mudas e sem vida.
  Você pode me perguntar, e eu responderei. "Não era ruim? Ficar pendurada com os braços estendidos e dolorosos, nua a ser açoitada pela chuva eternamente fria, com fome e sede?" E eu lhe respondo com outra pergunta. Pode o cego dizer o que é cor? Pode o surdo dizer o que é som? Pode uma criança que viveu dentro de uma caixa, dizer o que é o mundo inteiro? Pode uma menina que viveu sentindo a dor e o frio, dizer que eles eram ruins? E eis que lhe digo que não, não pode, pois se a dor, o frio, a fome e a sede foram os únicos sentimentos que eu conhecia, a eles eu daria as boas vindas quando se escondiam em minha carne.
  Portanto, em meio àquele sofrimento, eu descobri a linguagem das coisas, e graças a isso, eu escapei.

A Senhora dos Gigantes.Onde histórias criam vida. Descubra agora