Era uma noite fria e chuvosa, e isso fez Pedro dar uma risada imaginária, cheia de autopiedade. Sua vida era mesmo um clichê tão surrado quanto a frase que Snoopy batia à máquina quando tentava começar seu romance –que, até onde se sabe, nunca passou da primeira página.
A garoa paulistana incentivava o cultivo da preguiça embaixo das cobertas, mas era quarta-feira e não dava para faltar de novo na faculdade. Pedro teria que enfrentar o ônibus, o trânsito, a falta de educação alheia e sua falta de interesse no mundo. Outros clichês de um adolescente na cidade grande, sabia. Ao mesmo tempo, ele pensava: “todo mundo se achava diferente e sofria nessa rotina distanciando o seu sofrimento do sofrimento dos outros. Será que ninguém percebe que uma coisa está ligada à outra?”. Ele percebia isso, mas nem assim tomava alguma ação mais efetiva para fugir da rotina. Enquanto não terminasse a faculdade, teria que aturar o trampo que pagava pouco e as dificuldades que isso implicava. Sentia-se sentado em cima da própria vida, sem deixar que ela se movesse.
A chuva, ao menos, fez o ponto de ônibus ficar ainda mais vazio do que de costume. Aquela era a hora de chegar ao bairro e não de ir embora rumo ao centro. Por isso, além de Pedro, só mais umas quatro almas corajosas se protegiam do vento gelado. Dentre essas quatro, uma menina alta vestida com uma simplicidade feita sob medida para suas linhas retas e longas. Chamava a atenção de poucos, o senso comum diria que ali faltavam superlativos. Se bem que o senso estético da maioria era outro clichê que Pedro conhecia e repudiava.
E ele começou ali, na espera do ônibus, a desenhar ideias ao redor da menina. Aqueles olhos claros são de francesa. Ela também é estudante? Tem cara de hippie, deve fumar um beck atrás do outro. Que lindo esse cabelo, mas porque tão comprido? E assim ele percebeu, tarde demais, que tinha ativado na sua cabeça o maquinário infernal que criava ideias, hipóteses e suposições que eram respondidas rapidamente com desdobramentos, consequências e novas ações e reações –todoas imaginárias.
Primeiro as ideias otimistas, depois as pessimistas. Depois uma briga entre elas. Quase saia fumaça das orelhas de Pedro quando isso acontecia sem que ninguém que estivesse em volta percebesse. Outro defeito da maioria surda e estúpida, dizia sempre Pedro, é não reparar nos detalhes. Ninguém, a não ser ele, havia notado que havia uma flor intacta no chão, correndo o risco de ser pisoteada a qualquer segundo. Rapidamente surgiu a ideia de salvar a planta e puxar conversa com a menina que estava distraída, isolada do resto do mundo por seus fones de ouvido.
Do nada, caia do céu uma desculpa para encerrar as simulações e começar uma história –-boa, ruim, medíocre, curta ou longa, quem poderia saber? O ônibus podia passar a qualquer instante e acabar com essa oportunidade. Mas, primeiro, antes de tomar coragem, Pedro foi agarrado pela tentação de imaginar de onde tinha surgido aquela flor. Olhou para os dois lados da calçada e não viu nenhum tipo de árvore emergindo do chão de pastilhas pretas e brancas, daquelas que fazem o desenho do mapa de São Paulo. Só prédios e mais prédios cercavam o ponto de ônibus. Será que aflor fora arremessada de uma janela? Que tipo de pessoa joga uma flor pela janela? Só alguém muito revoltado. Aquela flor chegou até ali por causa de uma briga?
Mistério insolúvel é mistério resolvido. O próximo passo de Pedro foi pensar no que iria dizer depois de entregar a flor para a menina. Que tal não falar nada? Entrega a flor, olha no fundo do olho dela e não fala nada, Pedro! Deixa, que nesse xadrez vai ser a vez dela de jogar, e você já fez um movimento e tanto. Não, nada a ver. Coisa mais bizarra. Melhor não fazer nada do que passar vergonha.Entre rodadas e mais rodadas de pensamentos contraditórias, chegou o ônibus.
Primeiro o ranger da carroceria que parecia sofrer para passar nos buracos, depois a iluminação precária do letreiro desafiando a chuva, e, por fim, o ônibus em si, cheio de pessoas com olhares mortos e roupas indistintas. É agora ou nunca, Pedro! É nunca, então. Mesmo com a menina entrando no mesmo ônibus, sentando meio perto e quase olhando para ele num relance, que ele nem tem certeza se existiu, a flor ficou lá no chão. “Caralho”, Pedro gritou só para si mesmo ouvir, “é fácil demais reconhecer e odiar os clichês que nos cercam, mas não é tão simples assim fazer algo que surge na sua cabeça sem temer a reação de quem receberá esse atentado à normalidade”. Será que é por isso que o Snoopy nunca passa da primeira página?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Pedro e a Flor
RomanceEra uma noite fria e chuvosa, e isso fez Pedro dar uma risada imaginária, cheia de autopiedade. Sua vida era mesmo um clichê tão surrado quanto a frase que Snoopy batia à máquina quando tentava começar seu romance –que, até onde se sabe, nunca passo...