Isolado

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Mais uma volta na montanha-russa e voltaria para o quarto, Otto prometeu a si mesmo. As trutas florescentes demorariam outro ano para aparecerem de novo e ele se recusava a privar-se da visão que elas lhe privilegiavam. Mesmo que isso significasse a diminuição de severos minutos em seu período de sono. Já havia algum tempo que ele havia aceitado que certas coisas valiam mais que outras, especialmente aquelas que costumavam se esconder sobre os véus mais humildes.

Quando seu assento voltou a se elevar mais uma vez, dirigindo-o em direção ao topo da cúpula de vidro, Otto percebeu que tinha feito a escolha certa. Eram centenas de pontos coloridos cintilando em meio à escuridão da água, movendo-se em arranjos tão belos que dariam inveja a qualquer um dos designers e arquitetos que haviam trabalhado na construção do lugar que Otto chamava de casa. Ele mesmo se deixava ser desarmado de seus orgulhos para que a beleza da natureza o inundasse, preenchendo-o com admiração. Otto sabia que jamais conseguiria equiparar-se à amiga.

Ele desceu do brinquedo sentindo seu corpo leve e os olhos pesados: Agora estava pronto para dormir. As luzes e os brinquedos do sinistro e vazio parque de diversões se apagavam à medida que o jovem abandonava a área, dirigindo-se ao centro do lugar. Ali, em meio a gigante torre-aquário que se inseria na redoma, uma dezena de elevadores de vidro o aguardavam, à sua espera. Otto escolheu o mais próximo e selecionou o andar de seus aposentos, Benthos. Agora estava cansado demais para admirar as criaturas que se aventuravam sobre a coluna d'água dentro da construção, e apenas encarava o chão transparente enquanto era transportado até o fundo.

O elevador se abriu e o jovem adentrou o andar escuro. Não teve nenhuma dificuldade em achar seu destino, uma vez que ele mesmo havia sido o responsável por configurar aquela iluminação. Morar sozinho tinha suas vantagens, e Otto gostava de aproveitar ao máximo a visão de todos os seres bioluminescentes que habitavam o entorno da redoma. Especialmente os que via de seu quarto.

O calor aconchegante do aposento abraçou o corpo do jovem como um velho amigo. Ele chegara bem a tempo de observar as últimas águas-vivas atravessarem a visão de sua janela, dirigindo-se para aonde quer que aquelas criaturas mágicas iam de noite. Otto lançou-se sobre sua cama, que estrategicamente arrastada até a janela, lhe proporcionava a visão privilegiada de seu espetáculo favorito. Só que este não começaria até que o dia estivesse prestes a nascer, e o seu fã número um sabia que devia estar bem descansado para conseguir aproveita-lo ao máximo.

O problema era quando a mente não ajudava. Haviam dias em que o cansaço simplesmente não conseguia vencer todas aquelas ideias que borbulhavam na cabeça do menino como numa panela em fervura. E as dúvidas o bombardeavam com uma intensidade quase insuportável. Otto se perguntava o motivo da sua existência e daquele lugar, ponderava sobre o paradeiro das pessoas que ele sabia que deveriam dividir consigo o prazer da vida na redoma. Às vezes ele se pegava cético quanto a existência de explicação para qualquer dessas perguntas. Isso já não o abalava tanto.

Mas haviam aquelas dúvidas que ele simplesmente não conseguia se deixar esquecer ou relevar. Grande parte delas sobre o seu querido espetáculo. Otto aceitava que não havia um motivo para que ele estivesse ali sozinho, sem qualquer contato com qualquer outro ser humano durante toda a parte de sua vida que se lembrava. Ele já não questionava o fato de que talvez nunca fosse sair dali e poder sentir o cheiro do ar acima do mar ou tocar em uma água-viva (Apesar de que ele tinha a vaga sensação de que elas não eram tão vulneráveis quanto pareciam). Mas ele não suportava o fato de que o seu espetáculo não fosse seu.

Não era possível que de todas as pessoas que deveriam existir, todas as redomas que deveriam ter sido construídas, todos os oito andares e trezentos e cinquenta quartos, ele, Otto Marjani, houvesse escolhido aquele quarto específico por um acaso. Exatamente aquele que o proporcionaria a experiência mais mágica e real de toda a sua existência. Aquele que alimentaria a sua fome de viver mais um dia somente para ser agraciado com sua visão mais uma vez. Isso, Otto recusava aceitar. Por que ele sabia que havia mais sentido naquilo do que jamais houve em qualquer outro aspecto de sua vida. Ele sentia isso no núcleo de seu corpo e na imensidão de seu espírito.

Otto sabia que sua vida teria sentido enquanto ele buscasse o significado de seu espetáculo. Um dia, ele sabia que isso seria o responsável por preencher uma parte de sua alma que sempre sofrera com o vazio. E ele ia lutar por isso de todas as maneiras que conseguisse, para só aí poder descansar de verdade. Por enquanto, dormir era um mero passatempo. Uma pequena prova do que ele sabia que lhe esperava após o fim de sua missão. Dormir nada mais era que uma efêmera ilusão... mas que não caía mal depois de cada dia. Naquele momento, por sinal, parecia o suficiente.

Otto deixou seus olhos se fecharem e mergulhou no mundo dos sonhos.

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⏰ Last updated: Dec 26, 2016 ⏰

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OttoWhere stories live. Discover now