O fim da infância

10 1 0
                                    

Anabela pareceu não entender bem a gravidade do que acabara de ler. Seu pai teria escrito aquilo? – pensava.

Rompeu o lacre do papel dobrado que estava dentro do envelope. Viu o nome e o brasão de uma agência bancária e um monte de termos indecifráveis para ela... Enquanto se levantava do chão e limpava seu vestidinho, agora empoeirado, ouviu um baque surdo ao seu lado. Baixou o olhar e viu repousado no chão um pé de bota velho, tombado de lado. Olhou ao redor, pois achou que alguém havia jogado o velho calçado em sua direção. Seu irmão do meio gostava de lhe dar sustos e logo pensou nele; mas não havia ninguém lá. A única alma viva naquele celeiro era Anabela. Uma brisa entrou pela porta aberta e fez a madeira do lugar ranger. A menina recolheu todos os papéis e saiu apressada, pois o vento suave e os sons do lugar lhe fizeram arrepiar os pelos dos braços e nuca. O corpo de seu pai continuou ignorado, pendendo no alto e balançando levemente, pendurado pelo pescoço e apenas com um pé calçado.

A menina seguiu em direção à velha casa, agora tranquila por deixar aquele ambiente pesado, embora não soubesse dizer a razão pela qual sentira aquele desconforto. Mas o sol agora brilhava sobre ela, aquecia seu corpo, e mesmo que ela se sentisse bem por isso, não pensava a respeito; apenas sentia-se bem.

O pequeno Thor chegou-se à porta do celeiro, encarou o corpo que balançava de leve como um pêndulo, mas logo correu atrás da pequena menina.

Ela seguiu pelo gramado, correndo e cantando. Entregaria todos os papéis aos seus irmãos para que a ajudassem a entender do que se tratava. Ela tinha a impressão de que poderia ser algo importante. Talvez seu pai os houvesse perdido. Entrou no curral mas os meninos não estavam lá. Percebeu que o balde de ração estava cheio, longe do alcance dos animais. E eles já deveriam ter comigo. Ela sentiu vontade de despejar o alimento na manjedoura, mas não aguentava o peso.

Na porta, parou e olhou ao redor. As roupas lavadas toda manhã por sua mãe não estavam todas estendidas no varal. Alguns lençóis dançavam ao sabor do vento, mas a grande bacia de metal jazia no chão, colorida pelos tecidos tingidos.

Atravessou o pátio correndo e subiu os poucos degraus de madeira com pressa. Sentiu-se estranha novamente. Numa fração de segundos imaginou que havia sido abandonada por todos. Adentrou pela sala com os olhos arregalados e tudo estava inerte. Foi quando ouviu um leve chiado vindo da cozinha. Correu para lá e respirou aliviada quando viu sua mãe e os meninos sentados à mesa, ao redor do velho rádio. Por ter sua chegada completamente ignorada, Anabela estendeu a mão com o envelope vazio e os papeis que encontrara em seu interior. A mãe olhou como se olhasse para o nada e voltou sua atenção ao aparelho que parecia uma caixa cheia de abelhas, tamanho sinal de estática que emanava. Seus irmãos aparentavam tensão e a menina percebeu que algo de anormal estava acontecendo. O mais velho girava o desgastado botão do dial com cuidado, tentando captar algum sinal melhor. Quando a menina puxou o vestido da mãe, estendendo novamente a mão com os papeis, foi repreendida com apenas um gesto, um dedo em riste, e aquele olhar materno de reprovação que tanto falava por si, mesmo no mais absoluto silêncio.

Houve uma certa agitação quando o mais velho conseguiu finalmente sintonizar uma estação de rádio em que se fosse possível ouvir alguma coisa. Logo a mãe acenou para que todos se calassem imediatamente. A pequenina então passou a prestar total atenção àquilo que tanto importava para sua família.

Embora fosse muito nova à época dos fatos, Anabela dizia para os amigos que se lembrava exatamente da sensação que teve quando ouviu o repórter do rádio informar aos berros, em meio ao que parecia uma confusão generalizada, que diversos discos pretos e enormes, naves ele disse, haviam acabado de pousar nas principais capitais do país. Sabia que aquilo tinha ligação direta com o que lera na carta.

Enquanto olhava para sua mãe, que perplexa tapava a boca com ambas as mãos, e seus irmãos que olhavam estarrecidos um para o outro, a menina deixou os papéis sobre a mesa e saiu em silêncio para o quintal. Quando ela se assentou nos degraus da escada o pequeno Thor se aproximou, latiu e abanou o rabo como se quisesse brincar. Num despertamento interior, Anabela sentiu que as coisas mudariam de verdade a partir daquela data; e resolveu correr e brincar com seu cachorrinho, como uma despedida agradecida e precoce da infância perfeita que vivera até ali.

                                  



                                                                                                    FIM

A CARTAOnde histórias criam vida. Descubra agora