Capítulo um: AMADA AMÉLIA

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“SÓ OS VENTOS MAIS PROFUNDOS SÃO CAPAZES DE REVELAR OS
SEGREDOS DA ALMA” - LUCIAN RUFO

***

Quem diria que aquela menina de cabelo curto, óculos de garrafa e andar sem jeito seria
a presidente do Conselho Do Bairro Vermelho? Recém-chegada ali, mal conhecia seu
vizinho mais próximo, mal sabia o nome do cachorro que vivia pulando de lixo em lixo,
o qual todos chamavam de Luppe. “Amélia vai ser um retrocesso para a comunidade do
bairro! Sim, vai!". Era o que se ouvia depois daquela longa e cansativa reunião, mas foi
a decisão da maioria: 30 votos para Amélia, 26 para Bethânia e 5 para Lissy.
Bet, como era chamada pelos moradores, fingia estar feliz com a vitória de Amélia, mas
era nítido o seu fogo de insatisfação: “Sou mil vezes mil mais interessante e assídua do
que aquela moribunda forasteira! Como pode? Malditos moradores cabeça de vento!”.
Todas as decisões acerca do bairro vermelho agora passariam por Amélia, todos os
conflitos, incômodos e punições passariam por ela, e isso jamais descia pela garganta de
Bet. Enquanto todos se acostumavam com a nova presidente, sua rival (mesmo que
Amélia não soubesse disso) não suportava ter que ouvir seus conselhos e decisões.
17 horas e quinze minutos. Praça da paz, Bairro vermelho.
- Olá, queridos moradores do bairro! Primeiro faremos nosso juramento. – Dizia
Amélia, em pé, no alto de uma enorme pedra que servia de palco - a Pedra da Praça.
Todos fizeram gesto de Juramento e disseram juntos: “Pela paz de nossa comunidade,
pelo bem maior, pelo melhor, pelo vermelho do amor entre todos, pela confiança e
honestidade, respeito às normas de nossa sociedade, eu juro!”. Todos os bairros da
cidade de Néctar tinham seu próprio juramento; durante anos esse Juramento se repetia,
mas foi ali, naquele momento, que uma pessoa não quis abrir a boca.
- Bet? Que foi? Porque não fez o Juramento? – Perguntou Daniel, o seu amigo de
infância, tão esbelto como a luz que erradia na manhã. Daniel era um rapaz pouco
conhecido pela vizinhança, talvez porque ficava horas em seu quarto escrevendo
histórias a fim de se tornar um novo Shakespeare!
- Ah, Daniel! Quem é ela? Sabe alguma coisa sobre ela? Porque eu a obedeceria?
Eles falavam baixinho, enquanto Amélia, já aplaudida e amada ali por quase todos,
falava sobre como manter a paz com o bairro amarelo, que viviam um conflito há
décadas!
- Andei pesquisando, sabe, Daniel... Ela mora sozinha. Tão nova! Isso significa que ela pode não ter família.
- Família? Isso não danifica o caráter dela, Bet!
- Sim, eu sei! Mas isso é esquisito. Vamos embora. Tô farta disso! Quero comer! Comer
muito! – era evidente a sua agonia com tudo aquilo.
A noite chegou e o céu resolveu se nublar. Era chuva! Há muito tempo não caía chuva
na cidade de Néctar.
As poucas coisas que Daniel e Bet sabiam sobre aquela mulher estranha era que ela era
órfã e na parede de sua casa havia vários quadros de flores cinzas. Ninguém entendia o
significado. Era uma casa simples, mediana, sem flores e com algumas árvores. Ela não
permitia muitas pessoas ali; as reuniões eram realizadas no centro do Conselho, na casa
de Dona Lissy, antiga presidente do bairro e expulsa do cargo por cometer abuso de
autoridade.
Ainda chovia. Era madrugada, daquelas caladas e geladas. Leonardo, o porteiro do
Bairro, via a apressada Bet correr rumo à casa de Daniel. Parecia cansada. Estava
desesperada, em agonia. Batia na porta da casa de seu amigo, mas ninguém respondia.
Era tudo silêncio! Um silêncio que incomodava.
- Daniel! Daniel! Abra! – Nada acontecia. Isso foi o suficiente para fazer com que ela
retornasse para sua casa.
Madrugada. Doze horas e trinta minutos. Casa de Amélia. O telefone velho e herdado
de sua avó toca inesperadamente.
- Alô?
- Oi, Amélia...
- Quem é? Está tarde!
Com poucas palavras e num tom abafado, o indivíduo respondeu:
- Eu, querida. Eu.
De repente, a porta do quarto de Amélia se fecha brutalmente e, ao se virar, a moça
solitária é surpreendida por uma faca sendo enfiada em seu peito, ao lado do coração. O
porteiro, desconfiado de algo, ao chegar no quarto da jovem moça viu seu corpo gelado
e banhado de vermelho sangue no chão e uma pessoa de moletom e máscara de lobo
pular pela janela.
- Ela está morta!
Dia seguinte. Céu claro e clima frio.
Amélia estava morta.
Amélia vestia seu vestido avermelhado para o velório de sua antiga inimiga. Já não
havia nenhuma mágoa e repulsa. Mas...
- Bet, vim representando o conselho de justiça de Néctar. Você está presa!
- Como assim? Não! Tem algo errado!
- Vimos os documentos que Amélia deveria assinar para se tornar oficialmente a
presidente do bairro vermelho e junto tinha uma caneta com seu nome estampado:
“Bethânia Bela Paz”.
- Mas, eu...
- Venha com a gente!
Naquele instante, os dois são surpreendidos por Leonardo, que chegava ofegante e
assustado, quase sem voz.
- Leo, o que aconteceu?
- Amé...
- Fala, Leonardo!
- Amélia! O corpo dela sumiu!
Todos ficaram intactos, como pedra de raíz funda.
Menos Daniel, que em seu quarto derramava salgadas lágrimas com uma foto de Amélia
na mão, manchada de sangue.

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⏰ Última atualização: Dec 23, 2016 ⏰

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AMADA AMÉLIA - Um conto misterioso de Lucian RufoOnde histórias criam vida. Descubra agora