San Marino, Inverno de 1806
A adrenalina do momento fez a garota incitar o cavalo a correr mais depressa. Enquanto descia da cidade, no topo do monte envolvido pelas sombras da noite, quase caindo quando os cascos do animal escorregavam por entre a beira do precipício, ela sentia seu sangue quente.
Algo em seu íntimo, no entanto, lhe dizia que não deveria ser assim. Ela havia se esquecido de vestir seu casaco e calçar os sapatos quando seus perseguidores bateram à porta. Tinha consciência do vento frio e cortante atravessando o tecido fino da camisola, embora o único efeito que ele exercesse sobre sua pele fosse causar arrepios que só se confundiam com os da origem do seu pavor. Quando os pequenos flocos de neve começaram a cair, soube com toda certeza que precisaria deles.
Mas do que valem casacos e sapatos quando você está prestes a ser morta? Os cavaleiros negros nunca demonstraram piedade e hoje não seria uma exceção.
Os últimos galhos das faias e dos carvalhos arranharam sua pele quando chegou ao sopé do monte, e a garota pôde avistar a infinidade de colinas que se estendiam ao redor. Se continuasse naquele ritmo, eles nunca iriam lhe alcançar. Mais alguns quilômetros e só uma fronteira a transpor para sua liberdade e sua salvação. Ela instigou o cavalo a correr ainda mais rápido. Logo não estaria mais à vista deles.
De repente, a garota sentiu o cavalo vacilar. Um solavanco, e antes que pudesse fazer qualquer coisa a respeito, se viu jogada ao chão. Ele deve ter tropeçado... A garota angustiou-se quando ouviu o relinche do animal a alguns metros de distância. Esperava que ele não tivesse se machucado. Ela mesma não sentia dor graças à cobertura branca que cobria o chão, que tão delicadamente entorpecia seus sentidos e enregelava seus músculos... Estava tão frio e úmido ali, mas estava tão gostoso!
A garota não fez esforço para se levantar, e nem queria. Estava esgotada demais, não apenas pela perseguição, mas por tudo o que havia acontecido nos últimos dias. Ela só queria apenas descansar e por um momento esquecer toda a dor.
Cascos dos cavalos e gritos se fizeram ouvir ao longe. Será que eles estariam chegando? Ela sentiu o toque molhado e aveludado do focinho do cavalo em sua face, quase como se lhe pedisse para levantar. Mas porque deveria se levantar mesmo? Ela mal conseguia se lembrar do motivo. O pensamento de que parte da sua família estava em segurança, longe dali, lhe trazia conforto. Mas ela não podia dizer o mesmo de seu pai. Seu querido pai...
Papà...
Ao lembrar-se dele, uma onda sufocante de choro subiu por sua garganta. Mas, e ele? A garota se lembrou daquele outro homem, tão igualmente importante em sua vida. De como seus olhos azuis, sempre descontraídos, estavam preocupados e sombrios quando haviam se despedido naquela noite. Ele está seguro? Como posso ter certeza?
Agora ela sabia que precisava se levantar, mas não encontrou forças para isso. Seu corpo, seu pequenino corpo, tremia debilmente contra o frio que penetrava em seus ossos. Ou seria por conta do medo? A garota não tinha certeza, mas tentou se erguer outra vez. Seus braços não aguentaram seu peso e cederam novamente, afundando-a lentamente na neve macia.
Ela ouviu os seus perseguidores chegando e uma nova onda de pânico lhe atingiu quando finalmente avistou suas silhuetas escuras. Um suspiro trêmulo escapou de sua garganta, e ela sentiu raiva da lágrima gelada que escorregou em sua face. É tarde demais para escapar.
Eles a cercaram. Pareciam maiores vistos ali do chão. Um deles lhe ergueu pelo braço, provavelmente se decidindo o que faria com ela primeiro. Mas a garota mal conseguia entender o que eles diziam; a queda havia lhe deixado atordoada. Tudo parecia extremamente borrado e confuso, e um cheiro estranho e metálico pairava no ar. Seria sangue? Seu próprio sangue?
O homem que a segurava pelo braço lhe conduziu ao que parecia ser o líder deles. Ela engoliu em seco quando viu seu rosto, porém não se surpreendeu ao reconhecê-lo. Os olhos afiados dele lhe analisavam intensamente. Estava tão escuro que ela não conseguiu compreender a mensagem por trás deles, mas ela fazia ideia do que queriam dizer: Você não devia ter nos desafiado, garotinha.
O líder assentiu então para outro cavaleiro, que se aproximou com algo em suas mãos. Que seja rápida, por favor... A garota implorou mordendo o lábio, na expectativa de sua morte. Mas ela não iria fechar seus olhos. Queria morrer encarando-os, não como mais uma de suas vítimas indefesas. Foi quando notou que o objeto nas mãos do cavaleiro não era uma arma. A garota lançou um olhar confuso para o líder, quando de repente a obscuridade tomou conta de seus olhos. E finalmente ela pode sentir, tão terrível quanto a própria destruição, a dor sufocante escapando com um gemido de seus lábios.
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Romance em San Marino - Livro I [Prévia]
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